Revista de Psicofisiologia, 2(1), 1998

Ontogenia: do nascimento à velhice

2.3) O desenvolvimento segundo Jean Piaget

O que acontece com o homem, a nível de desenvolvimento, durante a vida? Como se dá a maturação do ser humano em cada período da existência?

Piaget, interacionista das idéias nativistas e empiristas trabalhou durante muito tempo essas questões propondo uma teoria cognitiva. A construção teórica de Piaget abarca principalmente o desenvolvimento humano até a idade adolescente (período operacional formal - 16 anos ) daí para frente, ou seja: da adolescência à velhice, Piaget pouco contribuiu.

Apenas salienta que a forma final atingida na adolescência consistirá no padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta.

Piaget salienta que há algo que impede o organismo de dominar de uma só vez, tudo que é cognoscível num determinado terreno, ou seja: não podemos conhecer tudo de uma vez num determinado terreno porque nossa percepção é seletiva e obedece uma ordem lógica e ainda - demanda atuação sobre o objeto de conhecimento. Piaget para construir seu "arcabouço" teórico atuava com seus próprios filhos como objeto de conhecimento além das experiências que conduzia.

Por outro lado também, Piaget não quis dizer que o desenvolvimento intelectual atinge um ápice na adolescência e depois se paralisa. Nada disso, simplesmente o que ocorre é que, uma vez atingido o grau de maturidade mental representado pela oportunidade de realizar operações mentais formais, esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu desenvolvimento posterior, segundo ele, consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de funcionamento mental.

A questão inicial de Piaget é fundamentalmente filosófica: o que é o conhecimento? O que conhecemos? Como conseguimos conhecer o que conhecemos?

Num segundo momento, com a ruptura com a filosofia, Piaget fixa como questão básica a sua reflexão epistemológica o processo de construção do conhecimento válido abrindo a possibilidade de utilizar métodos mais adequados para respondê-la, assegurando assim a ruptura com os questionamentos filosóficos clássicos. Entretanto, Piaget envereda-se para a lógica formal, que admite o reducionismo do terceiro excluído, isto é, a base da lógica formal, facilitadora do raciocínio. No entanto, atualmente os filósofos descobriram outra forma de raciocínio, o intuicionismo que é mais geral, portanto mais difícil, mas mais abrangente por não admitir o princípio do terceiro excluído.

A questão central agora é: a natureza dos quadros lógico-matemáticos do pensamento. São eles que nos permitem compreender a realidade exterior; mas de onde provêm estes quadros, estas formas de conhecimento? Podemos pensar que sua origem está no externo, que os impõe ao espírito ou vice-versa; pode-se pensar que sua construção exige uma colaboração necessária entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido, e que não são impostos nem por um, nem por outro. Podemos postular que os quadros mencionados preexistem ao próprio ato de conhecer e que sua evolução não passa de uma atualização progressiva de estruturas preexistentes ou que estas estruturas são o resultado de uma gênese ou construção progressiva. Combinando ambos os critérios - origem dos quadros do pensamento, existência prévia ou construção progressiva - Piaget formula o sistema das epistemologias, classificação das teorias do conhecimento existentes que ele utilizará como base de reflexão para elaborar sua própria postura (de interação) para situar-se no interior do panorama epistemológico.

Assim, por oposição às teorias epistemológicas clássicas, ele define a epistemologia genética por oposição às teorias da evolução, ele define uma teoria que se situa entre o lamarckismo e o mutacionismo e por oposição às outras teorias da inteligência, define a teoria do desenvolvimento operatório.

Assim sendo, além da interpretação que faz das diversas epistemologias, ressalta que esta interpretação se converte em instrumento gerador de hipóteses, tanto em nível propriamente epistemológico como biológico e psicológico.

Brincando com uma colocação parafraseada e antitética ("ver para crer ou crer para ver"), parece que poderíamos dizer ser essa colocação é o cerne da teoria de Piaget. Temos nessa colocação ambígua uma relação de causa x efeito que é própria da ciência no empirismo ("ver para crer") por exemplo, e própria do desenvolvimento ontogênico segundo uma visão maturacionista de Piaget ("crer para ver") no racionalismo, onde a priori pensamos que há de se ter uma estrutura de pensamento "inteligente e ser estimulada pelo meio) - nas palavras de Piaget. - "O sujeito não descobre verdades que lhe vêm dadas do exterior, mas ao contrário constrói esquemas cada vez mais abstratos, como por exemplo, a lógica e a matemática."

"O ponto de partida de um conhecimento jamais é a percepção sozinha ("ver para crer"?) mas a ação em sua totalidade que incluie também ("crer para ver") . A criança só aprende a conhecer os objetos agindo sobre eles, quer dizer, transformando-os de uma outra maneira." E esse transformar é a própria ação que é ao mesmo tempo o instrumento através do qual o organismo humano entra em contato com os objetos externos e pode decididamente conhecê-los, pois, segundo a perspectiva de relativismo integral e metodológico da psicologia genética, o objeto só existe enquanto conhecido ou suscetível de ser conhecido em suas relações com as ações do sujeito. Só conhecemos um objeto atuando sobre este e o transformando ("da mesma forma que o organismo só reage face ao meio assimilando-o no sentido amplo do termo"). "É claro que nas idades mais jovens, quando a criança só buscava o objeto se o enxergava, podia-se dizer que a percepção do objeto guiava sua busca ("ver para crer"), mas depois, alguma espécie de função simbólica deverá substituir a orientação visual ("crer para ver").

Enfim, Piaget, interacionista e construtivista percebeu que só através da ação, ou na interação entre o ser humano e os objetos, constroem-se formas de pensamento.

1)- Período sensório-motor (0-24 meses)

Representa a conquista, através da percepção e dos movimentos, de todo universo prático que cerca a criança. Isto é, a formação dos esquemas sensori-motores irá permitir ao bebê a organização inicial dos estímulos ambientais.

"No ponto de partida da evolução mental, não existe, certamente, nenhuma diferenciação entre o eu e o mundo exterior, isto é, as impressões vividas e percebidas não são relacionadas nem à consciência pessoal sentida como um "eu", nem a objetos concebidos como exteriores.

Uma das funções da inteligência será, portanto, nesta fase, a diferenciação entre os objetos externos e o próprio corpo.

O período de bebê é sem dúvida bastante complexo do ponto de vista do desenvolvimento, pois nele irá ocorrer a organização psicológicas básica em todos os aspectos ( perceptivo, motor, intelectual, afetivo, social ). Do ponto de vista do autoconhecimento, o bebê irá explorar seu próprio corpo, conhecer os seus vários componentes, sentir emoções, estimular o ambiente social e ser por ele estimulado, e assim irá desenvolver a base do seu autoconceito. Este autoconceito estará alicerçado no esquema corporal, isto é, na idéia que a criança forma de seu próprio corpo.

Começará, portanto, com uns poucos reflexos inatos que irão gradualmente, pelo exercício, se transformando em esquemas sensori-motores. Exemplificando: a criança herda uma tendência instintiva a se nutrir, tendência esta que será atualizada pelo reflexo de sucção. Ora, se observarmos um recém-nascido no momento de seu nascimento e alguns dias depois, veremos que este reflexo já se modificou, incorporando novos elementos, constituindo-se em comportamento mais amplo.

A criança irá conquistar alguns comportamentos que lhe permitam dar uma organização à realidade pela conquista da permanência substancial dos quadros sensoriais, da construção do espaço prático; da causalidade e a objetivação das séries temporais.

Assim ao final do período, a criança terá conseguido atingir uma forma de equilíbrio, isto é, terá desenvolvido recursos pessoais para resolver uma série de situações através de uma inteligência explícita, ou sensório-motora.

2)- Período pré-operacional (2-7 anos)

Ao se aproximar dos 24 meses a criança estará desenvolvendo ativamente a linguagem o que lhe dará possibilidades de, além de se utilizar da inteligência prática decorrente dos esquemas sensoriais-motores formados na fase anterior, iniciar a capacidade de representar uma coisa por outra, ou seja, formar esquemas simbólicos. Isto será conseguido tanto a partir do uso de um objeto como se fosse outro, de uma situação por outra ou ainda de um objeto, pessoa ou situação por uma palavra.

O alcance do pensamento irá aumentar, obviamente, mas lenta e gradualmente, e assim a criança continuará bastante egocêntrica e presa às ações.

Teremos, então, uma criança que a nível comportamental atuará de modo lógico e coerente ( em função dos esquemas sensori-motores adquiridos na fase anterior) e que a nível de entendimento da realidade estará desequilibrada ( em função da ausência de esquemas conceituais).

O egocentrismo se caracteriza, basicamente, por uma visão da realidade que parte do próprio eu, isto é, a criança não concebe um mundo, uma situação da qual não faça parte, confunde-se com objetos e pessoas, no sentido de atribuir a eles seus próprios pensamentos, sentimentos, etc.. O seu julgamento será altamente dependente da percepção imediata, e sujeito, portanto, a vários erros. Se fizermos duas fileiras de fichas emparelhadas, cada uma com um número diferente de peças, mas começando e acabando no mesmo ponto e se perguntarmos a uma criança de cinco anos se as fileiras são iguais, isto é, se têm a mesma quantidade de fichas, ela, provavelmente, responderá que sim. Se deslocarmos uma das fichas da fila de menor quantidade para além do limite das filas e fizermos a mesma pergunta, responderá que esta fileira tem maior quantidade de fichas.

Piaget realizou inúmeras provas que demonstraram empiricamente a ausência do pensamento conceitual e das noções de conservação e de invariância na criança em idade pré-escolar.

Estas provas têm sido repetidas por pesquisadores, psicólogos e professores em vários locais do mundo e os resultados têm confirmado aqueles obtidos por Piaget na Suíça. O que varia algumas vezes é a idade em que os conceitos são adquiridos pelas crianças e esta variação pode ser explicada por uma estimulação social e educacional mais rica e mais adequada.

Quanto ao aspecto social, vemos como característica marcante desta fase, o início do desligamento da família em direção a uma sociedade de crianças.

No que se refere à linguagem, o que se nota é a presença concomitante de linguagem socializada, um diálogo verdadeiro, com intenção de comunicação, e de linguagem egocêntrica, aquela que não necessita necessariamente de um interlocutor, não tem função de comunicação.

3)- Período das operações concretas (7-12 anos)

Este período que corresponde praticamente à idade em que se inicia a freqüência à escola elementar será marcado por grandes aquisições intelectuais de acordo com as proposições piagetianas.

Observa-se um marcante declínio do egocentrismo intelectual e um crescente incremento do pensamento lógico formal. A criança terá um conhecimento real, correto e adequado de objetos e situações da realidade externa, e poderá trabalhar com eles de modo lógico.

As ações físicas, típicas da inteligência sensorial-motora e ainda necessárias na fase pré-operacional, passam a ser internalizadas, passam a ocorrer mentalmente. Daí o nome dado à fase: operações concretas.

Estas operações mentais consistem em transformações reversíveis, toda operação pode ser invertida, e que implicam na aquisição da noção de conservação ou invariância, objetos continuam sendo iguais a si mesmos, apesar das mudanças aparentes. O julgamento deixa de ser dependente da percepção e se torna conceitual.

No que se refere à linguagem, verificar-se-á um acentuado declínio da linguagem egocêntrica até seu completo desaparecimento.

4)- Período das operações formais ( 12 anos em diante ).

Se no período das operações concretas, a inteligência da criança manifesta progressos notáveis, apresenta, por outro lado, ainda algumas limitações. Talvez a principal delas, que está implícita no próprio nome, relaciona-se ao fato de que tanto os esquemas conceituais como as operações mentais realizadas se referem a objetos ou situações que existem concretamente na realidade.

Na adolescência, esta limitação deixa de existir, e o sujeito será então capaz de formar esquemas conceituais abstratos, conceituar termos como amor, fantasia, justiça, esquema, democracia etc, e realizar com eles operações mentais que seguem os princípios da lógica formal, o que lhe dará, sem dúvida, uma riqueza imensa em termos de conteúdo e de flexibilidade de pensamento. Com isso adquire capacidade para criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta; discute os valores morais de seus pais e constrói os seus próprios. Faz sucessão de hipóteses procura propriedades gerais que permitam dar definições exaustivas, declarar leis gerais. Conceitos espaciais podem ir além do tangível finito e conhecido. Torna-se consciente de seu próprio pensamento. Lida com relações entre relações etc.

Entre outras aquisições típicas do pensamento lógico-formal, figura a possibilidade tanto de conceber como de entender doutrinas filosóficas ou teorias científicas.