Revista de Psicofisiologia, 1(1), 1997

A dor e o controle do sofrimento (II)

9) CARACTERÍSTICAS SECUNDÁRIAS E TERCIÁRIAS DA DOR

A dor é o principal motivo que leva o indivíduo a procurar um médico, especialmente quando se torna insuportável. É uma experiência muito pessoal e diversificada, variando segundo às aprendizagens ligadas à cultura, atenção, significado da situação e outros processos cognitivos. A dor é, primeiramente, um mecanismo protetor do organismo, sinaliza a lesão de algum tecido corporal, porém, pode persistir anos depois da lesão tecidual e da recuperação dos nervos lesados.

Ferida em uma dimensão

A arranhadela é uma lesão da pele que acontece quando um indivíduo passa a unha com força e rapidamente sobre a pele. Isso não causa muita dor. Porém, se essa manobra for realizada por outra pessoa, verifica-se que a dor é maior. Assim, não depende exclusivamente do ferimento. Ao observar uma arranhadela, primeiro surge uma linha branca, logo sendo substituída por uma cor avermelhada. Nada acontecerá se a arranhadela for pouco profunda ou se a pele for dura. No entanto, se for aplicada uma intensidade maior pela unha, a linha vermelha se empolará e ficará pálida: é a bolha de edema (ou pápula). Nesse estágio, o arranhão pode doer, ocorrendo uma vermelhidão que se estenderá de cada lado da pápula de edema: o eritrema. Eritrema é uma vasodilatação acompanhada ou não de tumefação, com sensibilidade bem estabelecida, estes três componentes constituem o que se chama reação de Lewis.

A dor sentida tem uma causa complexa. A pressão resultante do edema contribui para a dor, mas não e suficiente para explicá-la. Um ferimento representa tal perturbação, que no momento da lesão, todas as fibras nervosas dão origem a impulsos nervosos. Mesmo quando o ferimento é ligeiro, certas fibras continuarão a emitir impulsos, o que origina a dor aguda. Com a finalidade de explicar a longa duração da sensibilidade e sua extensão à zonas que não foram lesadas, são propostas quatro explicações:

(1) Mudanças primárias das terminações nervosas: o ferimento destrói as terminações nervosas dos axônios tubulares, que, nesse momento, produzem uma salva de impulsos de alta freqüência que são transmitidos ao cérebro, como dor transitória. Até a sua recuperação, tornam-se insensíveis e não dão nenhuma outra descarga. Terminações mais grossas ou mais distantes do local da lesão podem ser lesadas, sem se tornarem completamente inativas, ao contrário, tornam-se muito mais excitáveis facilmente. As terminações das fibras tornam-se muito mais sensíveis ao ponto de produzirem, doravante, impulsos que, provavelmente, originam a dor difusa e a dor aguda, presente nesses quadros;

(2) Substâncias algiogênicas (produtoras de dor): substâncias comuns presentes em todas as células, como os íons potássio ou trifosfato de adenosina (ATP), são liberadas pelas células lesadas e produzem dor, enquanto outras substâncias são segregadas pelos tecidos inflamados, como a histamina e a bradicinina, igualmente geradoras de dor, mas ainda inoperantes A bradicinina, parece ser o composto químico mais doloroso de todos, por isso muitos pesquisadores sugeriram que ela poderia ser o agente individual mais responsável para provocar o tipo de dor de lesão tecidual. Algumas substâncias provenientes do exterior do organismo também podem provocar dor, como por exemplo a capsaicina, encontrada na páprica (tempero);

(3) Ação dos nervos sobre os nervos: as fibras nervosas individuais, localizadas na pele, se subdividem em várias ramificações, se dispondo como os ramos de uma árvore: é a árvore terminal. Uma lesão na extremidade de um dos ramos, desencadeia impulsos que vão até a medula espinhal. Contudo, o influxo que chega até uma ramificação sobe ao SNC, mas também envia impulsos à periferia, descendo ao longo dos ramos circunvizinhos, cessando nos finos ramos terminais, secretando substância P, que sensibiliza outras terminações nervosas afastadas do local lesado;

(4) Sensibilização via SNC: quando se trata de lesões duradouras, como por exemplo um abscesso, a sensibilidade propaga-se a regiões tão diversas, que se torna impossível supor a existência de uma ramificação das terminações nervosas que unisse, entre elas, as zonas afastadas e o local próprio da lesão. Então, supõe-se, necessariamente, que a atividade desencadeada pela lesão inicial excita as regiões vizinhas, através de uma mediação do SNC, aumentando a sensibilidade geral.


Ferida em três dimensões: dor que ocupa espaço

Ao considerar as estruturas profundas, como as vísceras, deve-se levar em conta: a importância da inervação e a localização das terminações nervosas; o estado dos tecidos; o tipo de estímulo capaz de excitar os membros.

Para fins de ilustração, o ureter só produz sensação quando é estirado, como na expulsão de cálculos renais. O intestino só manifesta-se se produz estiramento por tração, dilatação ou espasmo, o caso das cólicas. A bexiga é sensível ao processo de estiramento, percebido nas necessidades fisiológicas (urinar); quando há inflamação (cistite), é diminuída a capacidade de estiramento sem dor, dando também cólicas.

As vísceras, portanto, reagem especificamente, a estiramento de seus tecidos. Por isso, o cuidado que se deve ter em manipulá-las durante uma cirurgia.

No caso dos músculos, aqueles que acionam os membros e o dorso (músculos estriados), são abundantemente inervados por vários tipos de nervos sensitivos, sendo raramente dolorosos, exceto no quadro de isquemia muscular. É assim também nos músculos lisos e no músculo estriado cardíaco (como por exemplo a angina).

Nas articulações normais, a pressão nos tendões, nas bainhas tendinosas, nas cápsulas articulares, no periósteo é causa de dor. Na artrite, a destruição de tecidos e a inflamação concomitante que se produz aumenta a sensibilidade das fibras enervadoras da articulação. Pequenas mudanças de pressão provocam fortes crises de dor.

No cérebro, a camada interna do crânio é insensível, podendo manipulá-lo sem acionar sensação de dor. Os dois terços da dura-máter no ser humano, são completamente desprovidos de inervação sensitiva. As partes basais da dura-máter e os grandes vasos sanguíneos são inervados por ramos do V par craniano. Uma vez exposto o cérebro, o córtex pode ser cortado em profundidade, sem que o paciente sinta qualquer sensação de dor. Estímulos elétricos intensos, localizados profundamente no cérebro, foram produzidos no homem consciente, sem produzirem queixas dolorosas, desde que o tronco cerebral não fosse tocado.

Por outro lado, trações sobre os seios venosos, lesões do tentório ou distensões da dura-máter na base do encéfalo podem ocasionar dores intensas reconhecidas como cefaléias.

Assim também, quase todo tipo de estímulo traumático, esmagamento ou distensão dos vasos sanguíneos da dura-máter pode produzir cefaléias. Uma estrutura muito sensível é a artéria meníngea média, e os neurocirurgiões tomam todo o cuidado de anestesiar essa artéria, especialmente ao realizar operações no encéfalo sob anestesia local.

Uma das mais fortes dores de cabeça é a conseqüente à meningite, que ocasiona a inflamação de todas as meninges, é a cefaléia da meningite.

A cefaléia tipo enxaqueca decorre supostamente de fenômenos vasculares anormais, embora não se conheça seu mecanismo exato. Uma das teorias quanto `a causa da enxaqueca é que a emoção ou a tensão prolongada causa espasmo reflexo de algumas artérias da cabeça. O vasoespasmo teoricamente produziria isquemia de partes do cérebro, e isso seria responsável pelos sintomas prodrômicos ( náuseas, perda da visão em parte do campo visual, etc).

A cefaléia alcoólica segue, geralmente, qualquer excesso alcoólico. É provável que o álcool, por ser tóxico aos tecidos, irrite diretamente as meninges e cause dores intracranianas.

Outros tipos de cefaléias são conseqüente a espasmo muscular, onde a tensão emocional ocasiona, com freqüência, espasmos dos músculos da cabeça; causada pela irritação das estruturas nasais e acessórias do nariz; causadas por distúrbios oculares, onde a contração excessiva dos músculos ciliares pode produzir cefaléia retro-orbital.

Há o caso especial da dor associada ao câncer ( cancro). As células cancerosas são praticamente constituídas pelos mesmos elementos químicos que as células corporais, sendo difícil detectar a doença nos primeiros estágios. A causa da dor é essencialmente mecânica. O câncer atinge tamanhos consideráveis na fase terminal, e começa obstruir mecanicamente a circulação do sangue e dos líquidos corporais, provocando o aumento da pressão e estiramento dos nervos. Por isso causa dor por sua compressão mecânica e por isquemia tecidual.