UNIDADES EVOLUTIVAMENTE SIGNIFICATIVAS

O conceito de espécie vêm sendo um problema desde a sua elaboração, sendo praticamente impossível  defini-lo em alguns casos. Alguns exemplos podem ser citados:

Em algumas espécies de plantas (notavelmente as bromeliáceas e solanáceas), observamos um alto grau de hibridização entre espécies diferentes. Já foram relatados casos da mesma espécie surgir em dois locais distintos, através da hibridização das espécies parentais. Problema: Originalmente pensava-se que uma espécie surgiria apenas uma única vez.

Algumas bactérias trocam material genético horizontalmente, podendo transferir vias metabólicas inteiras (ou características patogênicas inteiras) para espécies próximas ou distantemente relacionadas. Problema: a transferência horizontal pode fazer com que espécies distantemente relacionadas pareçam próximas (caso o critério utilizado para se determinar as espécies seja unicamente o material transferido), ou pode fazer com que espécies próximas, ou mesmo bactérias que seriam consideradas a mesma espécie pareçam distantemente relacionadas (caso o material transferido confira uma grande discrepância sintomatológia em bactérias patogênicas, por exemplo). É inclusive possível, através das técnicas de engenharia genética, gerar cepas em laboratório que possam ser consideradas espécies diferentes.

 Os problemas no conceito de espécie geram um outro problema: como escolher o que conservar? Só para se ter uma idéia, a área devastada da Amazônia em 1994, o último ano pesquisado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 15 000 quilômetros quadrados de florestas foram derrubados na Amazônia. A cada dia foi devastada uma área quase igual a 5000 campos de futebol ou noventa vezes o tamanho do Estado do Vaticano (fonte: Abril On-line). Assim, estratégias de conservação têm uma grande urgência de serem implementadas.

ILUSTRAÇÕES: Angelo Bonito

Os governos de praticamente todo o mundo demonstram uma grande preocupação em relação à perda de biodiversidade, e diversas estratégias para a conservação da mesma já foram propostas (para saber mais, clique aqui), mas em diversas situações é difícil escolher o que conservar. Assim, o grande problema  é: Se não conseguimos, em algumas situações, nem mesmo definir o que é uma espécie, como vamos definir o que conservar?

            Vamos à um exemplo prático: suponhamos que existam duas populações de roedores endêmicos de uma região, uma de cada lado de um rio. Suponhamos ainda que existam planos de se aproveitar uma das margens do rio para turismo, incluindo a construção de hotéis, parques temáticos, etc. Análises iniciais de ecólogos demonstram que a população de roedores do lado do rio escolhido para ser utilizado vai provavelmente ser extinta (extinção local). Assim, paira a dúvida: O que conservar? Será que é importante conservar as duas populações? Elas podem ser espécies diferentes? Mas e se uma delas possuísse uma variabilidade genética distinta da outra?

No caso dos roedores, podemos pensar em pelo menos duas situações mutuamente excludentes: em uma delas, após análises genéticas e ecológicas, percebemos não haver diferenças consideráveis entre as duas populações: ambas possuem aproximadamente o mesmo patrimônio genético, com a mesma freqüência alélica nos loci amostrados. Análises ecológicas corroboram esses fatos. Assim poderíamos, inicialmente, permitir a exploração turística do local. Na outra situação, poderíamos verificar a situação oposta: as duas espécies possuem diferenças consideráveis na freqüência alélica, ou que são populações distintas em via de especiação ou, mais grave para quem tinha a intenção da exploração do lugar, poderíamos descobrir que o que se pensava ser uma espécie são na verdade duas espécies crípticas distintas! Imediatamente falaríamos: é impossível a exploração turística do local (um outro problema seria como convencer que roedores são importantes para o mundo).

Nesse ponto outro assunto tem que ser discutido: por que é importante conservarmos duas espécies e não uma , se elas são tão parecidas? Por que temos que conservar alguma coisa?

Pelo menos dois pontos de vista podem ser utilizados para a explicação: o antropocêntrico e o biológico. No caso do antropocêntrico, podemos pensar que a espécie pode ter valor econômico direto através de exploração de recursos (alimentação, remédios, uso ornamental vestuário, por exemplo), valor econômico indireto, através da manutenção de ecossistemas, como polinizadores de plantas econômicamente interessantes, por exemplo.

Mas tão importante (se não mais) quanto o ponto de vista antropológico é o ponto de vista biológico. Não temos mais direito à vida do que qualquer outra espécie no planeta. A exploração de recursos naturais é inevitável, na medida em que modificamos o ambiente para nosso benefício. Mas devemos nos esforçar continuamente para manter o máximo de biodiversidade de todas as espécies do planeta.

Assim surgiu o cenceito de o conceito de unidades evolutivamente significativas (Ryder, 1986) e, posteriormente, o conceito de unidades de manejamento (Moritz, 1994).

O conceito de ESU foi desenvolvido para propiciar uma base racional para a priorização de taxa para esforços de conservação, uma vez que os recursos são limitados e que a taxonomia existente não reflete adequadamente a diversidade genética (Avise, 1989). Classicamente, adaptado de Ryder (1986), uma ESU pode ser definida como conjuntos de organismos de uma mesma espécie que possuem atributos genéticos significativos para as gerações presentes e o futuras da espécie em questão. Assim, uma ESU pode ser uma ou mais subpopulações da espécie que possuam uma alta variabilidade genética. Esse conceito foi proposto para fins de conservação.

No exemplo dos roedores, caso as populações dos dois lados do rio possuíssem o mesmo patrimônio genético, elas poderiam ser tratadas como uma única ESU e assim poderíamos escolher, em caso de escassez de recursos, conservar somente uma das duas. Mas, caso as populações possuíssem um patrimônio genético distinto, as duas seriam ESUs distintas (já que ambas contribuiriam para a variabilidade genética da espécie) e saberíamos que caso uma delas não fosse conservada, perderíamos uma porção considerável de patrimônio.     

O conceito de MU se refere a populações distintas entre si ao mesmo tempo que compartilham boa parte de suas características genéticas. Podem estar incluídas dentro de uma ESU.

No atual momento, não somos capazes de prever os futuros possíveis das populações dos organismos que habitam a terra hoje. Possivelmente apenas algumas poucas linhagens atuais vão gerar descendentes que originarão as espécies futuras e é impossível saber quais serão estas linhagens. Pensando nos termos das teorias evolutivas podemos imaginar que características do genoma que tem pouca ou nenhuma função conhecida hoje podem ser responsáveis no futuro pelo surgimento de uma nova espécie. Este fator deve ser levado em conta especialmente se pensarmos que é muito provável que existam as alterações ambientais desde discretas até drásticas e são nestes momentos que o processo de especiação e extinção têm sua glória. 

Devemos lembrar-nos de alguns elementos importantes a serem levados em consideração quando falamos de processos evolutivos e de conservação: que o ambiente está constantemente se alterando, que a variação necessária para as novidades é gerada a cada nova geração e que o processo de especiação não está congelado no tempo, mas em plena atividade. Olhando para uma paisagem repleta de organismos temos apenas uma fotografia das alterações ambientais e do processo evolutivo, especialmente a especiação. 

Estas razões são a nosso ver, suficientes para que abordagens como as ESUs, Mus e ‘stoks’ sejam estudadas. Mesmo que ainda não se tenha chegado a  um conceito unificado e plenamente funcional - como ocorre com inúmeros conceitos centrais na biologia, como espécie, gene, nicho, só para citar alguns - as propostas, discussões e diferentes posições a respeito já são grandes ganhos para a ciência e são necessários para que seja possível chegar a conclusões inéditas e inovadoras.

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