Revista de Psicofisiologia, 2(1), 1998

Sobrevôo: da ontogênese, passando pela infância e se detendo na velhice

2) GÊNESE E AMADURECIMENTO DO SISTEMA NERVOSO
E DOS COMPORTAMENTOS

2.1) Como o cérebro se desenvolve da fase embrionária à infância

        O sistema nervoso origina-se do folheto embrionário mais externo, o ectoderma. O inicio da formação dá-se por um espessamento do ectoderma situado acima da notocorda, formando a placa neural. Esta cresce progressivamente, espessa-se e adquire um sulco longitudinal, o sulco neural, que se aprofunda para formar a goteira neural. O tubo neural forma-se da fusão dos lábios da goteira neural. O ectoderma, ainda não diferenciado, fecha-se sobre o tubo neural, isolando-o do meio externo. A crista neural forma-se a partir de células que se desenvolvem de cada lado dos lábios da goteira neural. O sistema nervoso central (SNC) origina-se do tubo neural; o sistema nervoso periférico (SNP) e outros elementos originam-se da crista neural (Machado, 1993).

        Nas cristas neurais se diferenciam os neurônios sensitivos, cujos prolongamentos centrais ligam-se ao tubo neural, e os prolongamentos periféricos aos dermátomos dos somitos, á medula da glândula supra-renal, ás células de Schwann e a outros elementos.

        Em determinada idade do embrião temos o tubo neural no meio, rodeado de goteira nas extremidades. O crescimento das paredes do tubo neural dá origem a seis lâminas. As duas lâminas alares e as duas basais derivam neurônios e núcleos ligados respectivamente á sensibilidade e á motricidade.

        A parte cranial do tubo neural origina o encéfalo do adulto; dilata-se constituindo o encéfalo primitivo, ou arquencéfalo. A parte caudal origina a medula do adulto. No arquencéfalo distinguem-se três dilatações: prosencéfalo, mesencéfalo e rombencéfalo. Com o subsequente desenvolvimento do embrião, do prosencéfalo originam-se o diencéfalo e telencéfalo. Do rombencéfalo originam-se o metencéfalo e o mienlencéfalo. O telencéfalo compreende uma parte mediana e duas porções laterais. As vesículas telencefálicas laterais crescem muito formando os hemisférios cerebrais que encobrem quase completamente aquela parte mediana e o diencéfalo.

        A "luz" da medula primitiva forma no adulto o canal central da medula. A cavidade dilatada do rombencéfalo forma o 4° ventrículo e aquelas do diencéfalo e da parte mediana do telencéfalo formam o 3° ventrículo. A "luz" do mesencéfalo constitui o aqueduto cerebral que une o 3° ao 4° ventrículo. A "luz" das vesículas telencefálicas laterais formam os ventrículos laterais, unidos ao 3° ventrículo pelos forâmenes interventriculares. Com exceção do canal central da medula, todas estas cavidades contêm um líquido cérebro-espinhal ou liquor.

        A diferenciação da estrutura cerebral começa durante o período embrionário, aproximadamente seis semanas após a concepção, e vai até quatro semanas depois do nascimento.

        Desde muito cedo na vida fetal o cérebro, em termos de peso bruto, está mais próximo do seu estado adulto, do que qualquer outro orgão do corpo, exceto talvez o olho. No nascimento ele tem em média 25% do seu peso adulto. Aos seis meses quase 50%, aos dois anos e meio cerca de 75%, aos cinco anos 90% e aos lo anos ele tem 95%.

        O córtex cerebral no feto torna-se identificável com cerca de oito semanas. Daí em diante, ele aumenta gradualmente em espessura, primeiro uniformemente, mas por volta da 2° semana aumenta diferenciadamente em cada parte. Por volta da 26° semana a maior parte do córtex mostra a estrutura típica de seis camadas, um tanto indeterminadas, de células nervosas com uma camada de fibra no centro.

        De acordo com o desenvolvimento das diferentes partes do cérebro, podemos esquematizar alguns periodos de evolução sendo o 1° período no feto, até o 2° mês de gestação, permanecendo numa quase imobilidade. Num 2° período, da 5° a 8° semana de gestação, aparecem movimentos espontâneos.

        Do 2° até o 4° mês de vida intrauterina aparecem os primeiros movimentos neurais, ou seja, aqueles comandados pelo sistema nervoso, que são mais ativos, rápidos, coordenados e amplos. Desencadeiam-se por excitações diversas, podendo ser considerados ainda reflexos. Aparecem no dorso e nas mucosas, entre eles o oral e o anal, sendo o reflexo oral, resposta de fechamento da boca ou movimento de sucção e deglutição, um dos mais precoces e constantes. Observam-se também movimentos curtos das extremidades, são o reflexo de flexão, de extensão, de preensão da mão e o reflexo plantar. Esboçam-se também reflexos tônico-cervicais desencadeados por modificações da posição da cabeça em relação ao corpo e reflexos posturais desencadeados por mudanças de posição do corpo no espaço. Esses reflexos são conseqüéncias da diferenciação do neurônio motor periférico da placa matriz dos receptores periféricos e das células sensoriais. Há uma conexão entre os neurônios sensitivos externos e os motores, além de sensibilidade proprioceptiva em desenvolvimento.

        Os receptores do sistema vestibular do feto são excitados pelos movimentos do liquido amniótico, ocasionando, assim, uma diferenciação das células da via vestibular. Esses movimentos estimulam também a diferenciação das células da raiz ventral da medula e as da raiz dorsal. Podemos dizer também que as raízes motoras estão mielinizadas antes das sensitivas. A estimulação vestibular provoca também contrações do músculo do pescoço, tronco, membros e globo ocular, que estimulam os receptores dos músculos, articulações e tendões.

        Do 4° ao 6° mês de vida intrauterina a diferenciação e delimitação das reações motoras e o aparecimento das vias respiratórias são os contecimentos mais importantes. Os movimentos são mais rápidos e os reflexos transformam-se em cruzados. O reflexo plantar pode tornar-se maduro, os cervicais e posturais são mais constantes e precisos; aparecem os reflexos ósteo-tendinosos, e o de preensão é mais evidente. Anatomicam ente há uma maior maturação da parte alta do tronco encefálico e da formação reticular. O final da vida intrauterina, do 6° ao 9° mês, caracteriza-se pela observação de reflexos e movimentos espontâneos. O reflexo patelar, o aquileu e outros são mais evidentes; o reflexo cutâneo-abdominal consolida-se e aparece, no 7° mês, o reflexo pupilar. Também o tônus muscular se apresenta consolidado.

        No nascimento o córtex é muito pouco desenvolvido e sua aparência não sugere que muitas funções corticais, ou mesmo algumas, sejam possíveis. Dois claros gradientes de desenvolvimento ocorrem durante os primeiros dois anos. O primeiro se refere á ordem em que as áreas funcionais gerais do cérebro se desenvolvem, o segundo á ordem em que as estruturas se desenvolvem dentro das primitivas áreas correspondentes. A parte mais adiantada do córtex é a área motora primária, em seguida vem a área somato-sensitiva primária, depois a área visual primária e então a área auditiva primária. Todas as áreas de associação desenvolvem-se depois das áreas primárias correspondentes. Por volta do fim do 1° mês, a aparência da área motora primária do tronco e dos membros superiores sugere que ela talvez esteja funcionando. Aos três meses aproximadamente todas as áreas primárias estão relativamente maduras, sugerindo que a visão e a audição simples são funcionais ao nível das áreas primitivas corticais, mas não ao nível que envolva qualquer função interpretativa dependente da área de associação. Nesta idade, a área motora constitui claramente a parte mais desenvolvida do córtex, e dentro destas as áreas mais desenvolvidas são: mão, braço e parte superior do tronco. Por volta dos seis meses, parte destas áreas progrediu mais no seu desenvolvimento, e muitas das fibras exôgenas que chegam ao córtex já estão completamente desenvolvidas, particularmente rápido no córtex que controla os movimentos oculares.

        Entre seis e 15 meses a taxa de desenvolvimento é acelerada no lobo temporal, no cingulo e na insula, vindo em seguida o occipital, e por último os lobos parietal e frontal, que já passaram pela maior parte do seu desenvolvimento. A área motora primária ainda está ligeiramente adiantada em relação a todas as outras, mas dentro dela a área da perna ainda continua atrasada. A área de associação visual já amadureceu um pouco e está mais adiantada que a auditiva. Por volta dos dois anos, as áreas primárias sensitivas alcançam o desenvolvimento da área motora e as áreas de associação progrediram um pouco mais. Mas alguns núcleos internos, principalmente o hipocampo, relacionado ás emoções e á memória, ainda são claramente imaturas.

        O cérebro continua a se desenvolver, no nível macroscópico, na mesma seqüência, pelo menos até a adolescência e talvez até a idade adulta. A mielinização das fibras nervosas é somente um sinal de maturidade e as fibras podem conduzir impulso antes da mielinização. Como regra geral, as fibras que transmitem impulsos para áreas corticais específicas sofrem mielinização, ao mesmo tempo das que transmitem impulsos destas áreas para a periferia; assim a maturação ocorre em arcos reflexos ou unidades funcionais, em vez de ocorrer em áreas localizadas. Vários tratos como, por exemplo, o auditivo e o visual ainda não completaram sua mielinização, mesmo três ou quatro anos depois do nascimento. As fibras que ligam o cerebelo ao córtex cerebral e que são necessárias para o controle preciso dos movimentos voluntários, somente começam a se mielinizar depois do nascimento e só completam a mielinização aos quatro anos.

        Os neurônios da formação reticular, envolvida no processamento das diversas nuancias da atenção e da consciência, continuam a mielinizar pelo menos até a puberdade e talvez mesmo depois. A mielinização também é prolongada em partes do encéfalo anterior perto da linha média. Sugere-se que isto tem a ver com o desenvolvimento prolongado dos padrões de comportamento relacionados com atividades metabólicas viscerais e hormonais durante a vida reprodutora. Desde o nascimento a massa encefálica vai acelerando seu nível metabólico e intensifica-se a atividade mental.