Revista de Psicofisiologia, 1(1), 1997

A dor e o controle do sofrimento (II)

7) A TEORIA DO PORTÃO

A teoria do portão foi elaborada, em 1965, por P.D. Wall e r. Melzack, para explicar a influência da estimulação cutânea tátil no alívio da dor. Ela admite, essencialmente, existir nos cornos posteriores medulares - CPME - um mecanismo neural que se comporta como portão, que pode controlar a passagem dos impulsos nervosos transmitidos desde as fibras periféricas até SNC, através da medula.

O portão regula o influxo de impulsos nociceptivos, mesmo antes de se criar uma percepção à dor. A variação na passagem dos potenciais de ação (nociceptivas) que o portão produz é determinada pela atividade das fibras grossas (A-alfa e A-beta) e finas (A-delta e C), e também por influências cognitivas.

Quando há lesão tecidual, os estímulos nociceptivos são transmitidos por fibras finas, que penetram nos cornos posteriores da medula, ativando células de transmissão presentes na substância Gelatinosa (SG). A atividade das fibras grossas excita interneurônios que libera encefalina na conexão pré-sinática com célula T, inibindo a liberação de substância P, ou seja, inibindo a transmissão para as células dos influxos procedentes das fibras finas (da dor), ao mesmo tempo que se projeta ascendentemente no tronco encefálico para as estimulações táteis.

As fibras finas necessitam de fortes "estímulos" para transmitir os impulsos até as células T. Nas células T convergem fibras vindas de todo corpo (fibras da pele, das vísceras e de outras estruturas) que com suas influências, facilitador e inibidor, determinam um fluxo resultante maior ou menor conforme a modulação do portão da dor.

Quando esta resultante ultrapassar um limiar, as zonas neurais responsáveis pela experiência dolorosa e sua reação, são ativadas.

As fibras grossas funcionam como mecanismo de inibição da dor. Elas provocam uma descarga intensa nas células da lâmina V (responsáveis pela percepção da dor) onde se segue um período de inibição.

A substância gelatinosa (SG) constitui o portão de controle ( é o veículo do mecanismo do portão).

As células SG "comportar-se-iam como moduladores na transferência dos influxos que circulam dos nervos periféricos para as grandes células do corno posterior, cujos axônios transmitem a informação ao corno anterior, ao cérebro e aos segmentos distantes".

Um sistema especializado de fibras A de condução rápida (fibras c/ bainha de mielina) ativa processos seletivos cognitivos, que influenciam as propriedades moduladoras ao mecanismo do controle espinhal, por meio das fibras descendentes.

Sabemos que neurotransmissores atuam nas terminações das fibras finas, diminuindo a liberação da substância P o que caracteriza uma inibição do tipo pré-sináptica. Talvez isso explique a razão para o reflexo de massagear um local contundido, uma vez que a massagem estimula as fibras grossas do tato, excitando as células do CPME, produzindo encefalina e inibindo a transmissão da dor.

A circulação de informações nociceptivas, do CPME até níveis supra-segmentares, sofre grandes alterações devido a participação de um grande número de influências facilitatórias e inibitórias atuando em circuitos locais ou à distância.

Demonstra-se que estruturas encefálicas, em especial de núcleos localizados na formação reticular ao tronco encefálico, exercem atividade inibitória sobre interneurônios do CPME, fenômeno confirmado pela demonstração de que a estimulação elétrica da substância cinzenta periaquedural mesenfálica em animais, resulta em depressão da atividade dos neurônios das lâminas I e V do CPME ou cornos posteriores medulares e produz analgesia, sem comprometer outras formas de sensibilidade.

A morfina é o principal neutransmissor de inibidor da dor no cérebro.A demonstração da existência de receptores de morfina em várias regiões do sistema nervoso supramedular e a constatação de que a injeção de morfina na substância periaquedutal messencefálica provoca anestesia prolongada devido à ativação de tratos descendentes inibitórios, foram marcos importantes para consolidar os conceitos modernos sobre os mecanismos de supressão da dor.

Foram identificados peptídeos com função morfínica em várias regiões do SNC, nas fibras dos núcleos magno e dorsal da rafe, na substância cinzenta periaquedutal, no tálamo e na amígdala, além de nas células do CPME. Em células da porção anterior e intermediária da hipófise, no núcleo arqueado do hipotálamo, no núcleo do trato solitário e em fibras que, do núcleo arqueado se projetam no septo, tálamo, mesencéfalo e substância periaquedutal do mesencéfalo, na substância negra, estruturas do sistema límbico. Estas substâncias neurotransmissoras ligará-se a subtipos de receptores de morfina envolvidos no mecanismo de supressão da dor.

A integridade das vias descendentes localizadas no funículo dorso lateral da medula é fundamental na supressão da atividade nociceptiva da medula espinhal. Foi proposto que a morfina atue na substância cinzenta mesencefálica por meio de uma desinibição, provinda dos núcleos bulbares ventromediais.

Também foi evidenciada a presença em neurônios e em terminações nervosas, de GABA, provavelmente com função supressora, na substância periaquedutal mesencefálica, núcleo magno da rafe e no núcleo gigantocelular.

Parece que as vias noradrenérgicas, colinérgicas e dopaminérgicas também participam da analgesia induzida pelo GABA. A neurotensina, que se encontra presente na substância cinzenta periaquedutal mesencefálica, atua nas vias descendentes supressoras do núcleo da rafe.

A dopamina e seus agonistas e antagonistas noradrenérgicos têm atividade supressora quando administrados no núcleo da rafe.

GABA exerce atividade sobre os neurônios do internúncio presentes no CPME. Parece que a calcitonina tem uma atividade excitatórias sobre o CPME, e, a substância P, atividade excitatória e inibitória.

A analgesia induzida pela administração de morfina na amígdala parece ser dependente da atividade celular do CPME. Hoje se conhece pouco a respeito do mecanismo da modulação da dor no telencéfalo. Colaterais do trato córtico-espinhal, que partem do córtex motor e das áreas sensitivas primária e secundária, exercem atividade inibitória sobre os núcleos das lâminas V,VI e VII do CMPE, a as vias vestíbulo espinhais exercem atividade sobre neurônios das lâminas V e VI, por via dos tratos presentes no funículo anterior da medula espinhal.

O efeito inibidor tônico descendente sobre a nocicepção parece ser influenciado por vários mecanismos. A modificação dos paradigmas comportamentais parece influenciar as respostas das células do CPME. A atividade das unidades celulares supressoras segmentares também é influenciada pela atividade do sistema nervoso periférico. Com frequência, os indivíduos não percebem imediatamente a dor causada por traumatismos, como no caso de atletas no caso de uma competição em que estejam envolvidos. Enquanto que, em outras situações, o estímulo nociceptivo é percebido com intensidade exagerada. Estes mecanismos de controle da nocicepção parecem atuar rapidamente, mesmo antes que haja percepção de um estímulo nociceptivo.

Em caso de dor crônica surgem alterações da fisiologia de vários órgãos e sistemas do indivíduo, como por exemplo, a ativação simpática que envolve constante estado de alerta do organismo. Sendo o sistema analgésico intrínseco parte de um mecanismo regulador complexo, ativado pela estimulação discriminativa, nociceptiva ou não, atenua a dor.

Em cobaias, este sistema inibe neurônios polimodais presentes nas lâminas superficiais do CPME e também nos núcleos do trato espinhal do nervo trigêmeo, sendo ativado por estímulos álgicos discriminativos aplicados em qualquer região do corpo, mesmo distante do campo de distribuição do neurônio nociceptivo estudado. A inibição resultante da ativação perdura por vários minutos, enquanto o sistema difuso parece ser bloqueado pela morfina e é dependente da atuação de estruturas supra-espinhais.

Sua ação parece permitir que os neurônios multimodais reconheçam sinais nociceptivos e atenuem a atividade de outros neurônios convergentes vizinhos aos ativados, aperfeiçoando, deste modo, o caráter discriminativo dos estímulos processados por essas unidades sensitivas. Este é o mecanismo de atenuação da dor pelo método da contra irritação. A estimulação nociceptiva intensa resulta em elevação dos níveis basais de serotonina, noradrenalina e encefalina no líquido cefalorraquidiano e encefalinas no CPME.

Em caso de dor crônica, o aumento da serotonina vai produzir um círculo vicioso da dor, provocando alterações no ciclo sono-vigília, comumente na forma de insônia. Essas alterações, por sua vez, vão aumentar ainda mais a produção de serotonina que, enquanto substância algiogênica, contribuirá para o incremento dos níveis de dor sentida.

Estímulos nociceptivos liberam neurotransmissores que estarão envolvidos na modulação segmentar da aferência nociceptiva. Os neurônios da substância cinzenta periaquedutal mesencefálica e da formação reticular bulbar ventro-medial são ativados por estímulos discriminativos e pelo despertar, sugerindo que a atenção e o alerta estejam envolvidos na sua atividade.

O estímulo nocivo é um dos mais susceptíveis para a produção da analgesia, talvez por atuar de modo expressivo sobre o sistema supressor descendente. Tanto nos seres humanos como animais esse mecanismo atua apenas na supressão da dor em queimação, sugerindo que a duração da dor e o estresse são importantes para a ativação de sistemas moduladores através de fatores ambientais complexos de atenção, e de condicionamento.

Disto se pode concluir que as unidades neuronais, dos canais sensoriais e os neurotransmissores envolvidos no mecanismo de supressão e a ativação das vias nociceptivas, parecem atuar conjugadamente. Assim, a ativação dos receptores de morfina no tronco, a estimulação do tálamo e da substância cinzenta periaquedutal mesencefálica, entre outras estruturas, podem bloquear os reflexos nociceptivos espinhais, através da excitação das vias bulbo-espinhais inibitórias. A substância P parece liberar encefalinas nas terminações do CPME. A supressão do mecanismo de modulação resulta em aumento aparente da intensidade do estímulo, tal como ocorre em situações de bloqueio da ação do GABA, ou após a administração de bicuculina.

Isso tudo sugere que existia atividade tônica inibitória intensa que é desencadeada por estímulos aferentes de variados limiares.

A atuação desse sistema resulta na interpretação de um estímulo ser ou não ser nociceptivo, o que irá determinar toda e qualquer percepção da dor ao nível do córtex cerebral, ou seja, toda a integração da percepção da dor com outras atividades cognitivas.