Revista de Psicofisiologia, 1(1), 1997

A dor e o controle do sofrimento (II)

11) ASPECTOS COGNITIVOS, CULTURAIS E EMOCIONAIS DA DOR

As representações no imaginário de cada cultura contam uma história particular a respeito das universais com que se defronta a ser ao longo de sua histórica passagem pela Terra. Cada uma dessas histórias particulares, sejam lendas , mitos ou a própria forma de se conhecer e se falar a respeito da experiência, isto é, algo como a ciência , é vivida por cada grupo de indivíduos ou comunidades culturais enquanto padrão e referência para se interpretar significativamente a experiência, modulando, assim, a consciência e a ação.

Dessa forma, a percepção e o significado da dor, enquanto experiência universal do ser humano, também é modulado pela cultura. O próprio meio cultural onde se é criado desempenha um papel essencial na maneira como se sente e reage à dor.

É uma constatação do cotidiano , não haver uma relação constante e previsível entre dor e lesão. Diversos estudos psicológicos e antropológicos demonstram que a dor não depende exclusivamente da lesão orgânica, pelo menos nas espécies superiores. Em vez disso, que a intensidade e o caráter da dor que se sente são também influenciados pelas experiências anteriores, as recordações que delas temos e a capacidade de compreender as suas causas e conseqüências.

Estudos revelam que a dor é muito variável e modificável, diferindo de pessoa para pessoa e de cultura para cultura. Estímulos que suscitam uma dor intolerável num indivíduo podem ser suportados sem queixas por outro. Por exemplo, em certas culturas as cerimônias de iniciação e outros rituais incluem provas de que se pensam serem dolorosas , contudo, diversos observadores referem que essas pessoas parecem sofrer pouca ou até nenhuma dor. A percepção da dor não pode, então , ser definida apenas em termos de tipos particulares de estímulos . Trata-se de mais uma experiência pessoal que depende da aprendizagem cultural, do significado atribuído à situação, e também de outros fatores essencialmente individuais.

Afirma-se , muitas vezes que as variações da experiência dolorosa entre as pessoas se devem a "limiares de dor" diferentes . Dados de experiência demonstram , sem distinção de origem cultural , haver um 'limiar de sensação" . Isto é , o aparelho de condução sensitivo parece ser essencialmente o mesmo, em todos os povos, pelo que para um determinado nível de estimulação se desencadeia sempre uma sensação.

Contudo, os antecedentes culturais exercem uma influência considerável sobre o "limiar de percepção à dor" . Por exemplo : os povos de origem mediterrânea acham dolorosos níveis de calor radiante que os Europeus do Norte descrevem como simplesmente quentes.

Influência bem mais acentuada da origem cultural verifica-se sobre os "níveis de tolerância da dor" . As diferenças de tolerância refletem as diversas atitudes étnicas em face da dor . Segundo Zborowski (1952) os americanos têm uma atitude contida e de aceitação perante a dor, enquanto que judeus e italianos, tendem a ser exuberantes em suas queixas e pedem abertamente apoio e simpatia.

Com relação as experiências anteriores, resultados de estudos sugerem que o significado atribuído aos estímulos do meio, no decurso das primeiras experiências, desempenha um papel importante na percepção da dor. Melzack e Scott (1957) isolaram cães de certa raça, do nascimento à maturidade, privando-os por isso dos estímulos ordinários do meio, incluindo os ataques e ferimentos que os jovens animais sofrem durante o crescimento. Os experimentadores ficaram surpreendidos , ao constatar que quando adultos, estes cães não reagiam normalmente aos diversos estímulos nociceptivos. Por outro lado, não se pode determinar em que medida as primeiras experiências influenciam o comportamento.

Verifica-se, também, nas pessoas que tem uma interpretação diferente das situações evocadoras de dor, são determinantes no grau e tipo de dor sentida. Por exemplo, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, (Beecher,1959), observou-se o comportamento de soldados que tinham sofrido ferimentos graves. E, constatou-se que somente um em cada três feridos internados no hospital, se queixava de dores suficientemente fortes para que se tivesse de recorrer à morfina. Sendo que a maior parte recusava admitir que seus ferimentos lhe causavam dor. Segundo Beecher, essa reação aos ferimentos manifestava-se por um alívio e satisfação de ter saída vivo do campo de batalha. No entanto, mais tarde na vida ele pode constatar que as pessoas ficavam estritamente sensitivas à dor de pequenas cirurgias, mesmo sendo submetidas a intensa anestesia.

No que diz respeito à percepção da dor, sabe-se que a atenção é um dos fatores cognitivos mais importantes. Se uma pessoa concentra a atenção numa situação potencialmente dolorosa, tende a sentir dores mais intensas do que o normal. Em contraste com o efeito amplificador da atenção sobre a dor, a distração pode diminuí-la ou aboli-la. Constata-se comumente, a possibilidade de diminuir a dor, quando a atenção é voluntariamente focada noutras situações, como jogos, filmes ou livros interessantes, tem proporcionado um remédio caseiro simples para a dor. Entretanto, a distração da atenção, só é eficaz se a dor for constante ou se intensifica lentamente.

Convém ressaltar um pouco da importante participação do sistema límbico no processo doloroso. As estruturas límbicas fornecem uma base neuronal para a tendência repulsiva e para o afeto que compreende a dimensão motivacional da dor. Uma vez que a ressecção do feixe do cíngulo, que liga o córtex frontal ao hipocampo, leva a uma perda do "afeto negativo", que, nos homens corresponde à dor intolerável.

Interações complexas nas estruturas hipotalâmicas e límbicas, explicariam , talvez, porque é possível bloquear a reação de repulsa provocada pelos estímulos nociceptivos, ativando as zonas de "compensação" no hipotálamo lateral.

O papel das estruturas límbicas é complicado e delicado. As lesões sofridas pelos animais superiores produzem-se num contexto espacial e social exigindo, freqüentemente, reações complexas. Assim, o hipocampo parece proporcionar uma carta cognitiva em que as relações espaciais entre os objetos constituindo o ambiente, determinam a modalidade de certas reações de fuga ou busca de um esconderijo diante predadores perigosos ou rivais. A amígdala fornece, aparentemente, uma "orientação afetiva" , confrontando a informação atual e a experiência anterior, de tal maneira, que quer animais quer homens são capazes de reagir adequadamente aos estímulos, segundo lhes são familiares ou não.

O sistema somestésico é uma estrutura unitária e integrada constituída por componentes especializados.

Vários sistemas paralelos procedem a uma análise simultânea do influxo, para fazer ressaltar a variedade e a complexidade da dor e da reação que esta provoca. Algumas zonas especializam-se na seleção da informação sob o aspecto sensação - discriminação, outras intervêm na dimensão afetividade - motivação da dor. Estes sistemas paralelos de tratamento de informação relacionam-se mutuamente, mas devem igualmente inter - relacionar-se e as atividades corticais subjacentes, no que diz respeito à experiência passada, a atenção e aos outros fatores cognitivos determinantes na dor. Estes processos de interação determinam os inumeráveis esquemas de atividade que suportam os diversos tipos de experiência dolorosa.

A exemplo disso, é o deslocamento da atenção que permite ao faquir, num estado de concentração absoluta, deitar-se numa cama de pregos e meditar, não se aperceber do estímulo normalmente doloroso provocado pelos pregos. Permite, também, em várias culturas "primitivas" , rituais de iniciação onde indivíduos se penduram ou furam a pele com agulhas, não sentindo a dor decorrente das lesões ou andam sobre brasas incandescentes sem sofrer lesão alguma. Rituais semelhantes são feitos por algumas tribos indígenas americanas.

Finalmente, levando-se em consideração a relação dor/glândulas endócrinas, lembraremos que parte das substâncias envolvidas na dor ou em sua modulação, tais como a serotonina, adrenalina, noradrenalina , prostaglandina, estão intimamente vinculadas ao sistema endócrino e à ativação dos sistemas simpáticos. A prática da yoga , por exemplo, procura controlar esses dois sistemas através do sistema endócrino, resultando , provavelmente em uma ação sobre a dor.

Apesar de ser universal, a dor pode adquirir significados diferentes para povos, culturas e indivíduos diferentes. E assim , tanto sua percepção quanto sua terapêutica são muito variadas. Entretanto, parece que não há ser humano insensível à dor, nem corpo de conhecimento que não se ocupe dela.