Revista de Psicofisiologia, 1(1), 1997

A dor e o controle do sofrimento (I)

3) TEORIA DO PORTÃO OU DE CONTROLE DA DOR

Esta teoria admite existir nos cornos posteriores medulares um mecanismo neural que comporta como um portão, podendo aumentar ou diminuir o débito dos impulsos transmitidos desde as fibras periféricas ao sistema nervoso central. O influxo somático submete-se pois, à influência reguladora do portão, mesmo antes de criar uma percepção à dor e conseqüente reação.

 MODELO CONCEITUAL:

A lesão produz sinais que se transmitem por fibras finas. Estas penetram nos cornos posteriores da medula e ativam as células de transmissão que, por seu turno, enviam sinais para o cérebro. Contudo a atividade nas fibras finas cria, também, na raiz posterior, potenciais que refletem a presença de uma atividade prolongada e mais complexa no corno posterior.

A atividade das fibras grossas excita igualmente células da substância gelatinosa e inibe, simultaneamente, a transmissão dos influxos dolorosos procedentes das fibras aferentes finas.

 

PRIMEIRA VERSÃO:

  1. A transmissão dos impulsos nervosos é modulada por um mecanismo de controle espinhal, funcionando como um portão, situado nos cornos posteriores.

  2. A atividade nas fibras grossas tende a inibir a transmissão, ao passo que nas fibras finas tendem a facilitá-la.

  3. O mecanismo de controle espinhal sofre a influência dos impulsos nervosos que descem do cérebro propriamente dito..

  4. Um sistema especializado de fibras grossas de condução rápida ativa processos seletivos cognitivos, os quais influenciam por meio de fibras descendentes, as propriedades moduladoras do mecanismo de controle espinhal.

  5. Quando o fluxo das células de transmissão da medula ultrapassa um nível crítico ativa o Sistema de Ação, isto é, aquelas regiões neurais responsáveis por esquemas complexos e seqüenciais que se associam ao comportamento e experiência característicos do fenômeno doloroso.

O efeito da teoria foi suscitar num primeiro momento controvérsias entre cientistas e clínicos especializados na dor.

 

SEGUNDA VERSÃO, MAIS APERFEIÇOADA:

  • A hipótese de a substância gelatinosa ser o veículo primário do mecanismo do portão permanece como tal, mas ainda não constitui um fato.

  • Falar do antagonismo entre fibras finas e grossas pode significar um fato arbitrário.

É altamente provável que os nervos possam controlar o encaminhamento dos impulsos nervosos dentro do sistema nervoso central graças a um mecanismo que depende de um transporte e de uma libertação relativamente lenta de substâncias químicas a que se junta uma transmissão e uma ação muito rápidas dos influxos nervosos. A maior parte do substrato anatômico estável, necessário para a transmissão dos impulsos nervosos, seria assim mantido num estado de inação por estes lentos processos de mudança. O conceito de sinapses ineficazes, que a ação das modificações lentas das células da substância gelatinosa poderia libertar e tornar atuantes, junta uma nova dimensão à teoria do portão.

Os médicos sentiram-se mais livres para descrever os casos fora do comum ou os fenômenos inexplicáveis. Os psicólogos encontraram um modelo que situava as observações e as técnicas psicológicas na corrente de investigação sobre a dor. Os fisiologistas foram explorar zonas medulares ou cerebrais, antes consideradas como estranhas à dor.

Uma das primeiras conseqüências da teoria do portão foi abolir a idéia de que a dor era uma sensação simples e projetada especificamente sem interferência até um centro de integração da dor. Esta concepção durante muito tempo relegou à sombra as dimensões cognitivas e afetivas da experiência global. A teoria do portão, pondo acento tônico nos sistemas de processos paralelos, procurava agora, um quadro teórico que integrasse as dimensões sensoriais, afetivas e cognitivas da dor.

Ao eliminar a noção de uma via dolorosa direta e única, a teoria do portão permitiu refletir sobre as interações entre os sistemas ascendentes e descendentes.

Pela teoria do portão, as fibras da pele, das vísceras e de outras estruturas convergem para as células de transmissão. A resultante de todas essas influências, facilitadoras e inibidoras, determina o débito dessas células. A dor associada a lesões dos nervos periféricos caracteriza-se por hiperalgesia e hiperestesia atribuíveis a uma liberação excessiva da passagem da dor.

A teoria do portão fornece uma base conceitual para a explicação da dor espontânea e da somação temporoespacial favorecida pela convergência dos influxos. Pode-se igualmente explicar a dor espontânea que surge na falta de toda a estimulação manifesta. A teoria do portão deixa entender que processos psicológicos podem ter uma influência sobre a percepção da dor e a reação consecutiva, atuando no mecanismo espinhal do portão.

Dois mecanismos podem explicar a irradiação dolorosa:

  1. Propagação da dor em regiões adjacentes do corpo. Este influxo difuso encontra-se normalmente inibido pelos mecanismos do portão, mas pode provocar descargas na célula T se possui uma intensidade suficiente ou se o portão está aberto.

  2. Propagação da dor e das zonas-gatilho, zonas comprometidas em numerosos fenômenos de dor para regiões consideravelmente afastadas, comprometendo estruturas viscerais bem como regiões cutâneas e miofaciais. Esta irradiação permite supor que certas atividades, as que ocorrem em regiões distantes, podem abrir o portão.

Lesões do sistema nervoso central são igualmente susceptíveis de produzir irradiações dolorosas.

A teoria do portão é capaz de conceder às atividades neurais prolongadas que se relacionam com a dor a importância que se lhe consiga. Dificilmente se explicariam certas observações clínicas e experimentais espantosas sem fazer intervir estes mecanismos.

A idéia da existência do fenômeno da dor, de um mecanismo de tipo memória, repousa em dados experimentais convincentes.

A teoria do portão permite entender certos tipos de dor prolongada, consecutiva a lesões dos nervos periféricos ou outras patologias nervosas. Para esclarecer estes efeitos prolongados, que constituem algumas das características mais enigmáticas da dor, é preciso postular a existência de influxos somáticos persistentes, intensos ou comportando outras anomalias, capazes de gerar modificações a longo prazo da atividade do sistema nervoso central.

Os mecanismos nervosos que estão na base da atividade prolongada de tipo mnemônico associada à dor permanecem misteriosos.

Em certos pormenores a mecanismos do portão põe ainda um problema sério. O modelo original insistia no controle pré-sináptico, mas sabe-se hoje que se produzem inibições também pós-sinápticas. As pequenas dimensões dos componentes e o seu amalgamento em zonas minúsculas levantam problemas técnicos consideráveis.

Todavia, o conceito original de um portão de controle mantém-se como um poderoso resumo dos fenômenos verificados na medula e no cérebro e tem capacidade para explicar muitos dos problemas misteriosos e intrigantes que se encontram na clínica.