A douta incompetência

Jose Arthur Gianotti

Defender posições libertárias na universidade de hoje é desconhecer os problemas concretos, como se ainda estivéssemos no tempo das sonoras e simplórias palavras-de-ordem

Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere (Espinosa)

Me precipitei sobre o texto de Marilena Chaui, "Sabidos e sábios, uma discussão ociosa", publicada no Folhetim de 22.10.85, com ansiedade e esperança, pois no final das contas, minha sábia colega costuma ter algo a dizer. E, neste momento em que todos estamos interessados em pensar uma nova universidade brasileira, em que ninguém possui o mapa da mina, quanto mais pessoas toparem o desafio tanto melhor. Confesso, entretanto, meu desapontamento, porquanto saio com a impressão de que Marilena não está lendo meus textos com cuidado.

Se constato a falência dos dois paradigmas que nortearam o pensamento sobre o Brasil, nas últimas décadas, a Economia Política e a Sociologia, percebendo então um espaço inédito para a reflexão filosófica, logo ela conclui, para se pôr contra, que tomo incorretamente a Filosofia como farol destinado a coordenar comportamentos. Não seria mais fácil, concluir que estamos passando por uma fase de muitas incertezas que traz uma filosofia reflexionante para o cotidiano? Se em artigos polêmicos uso a oposição retórica entre sábios e sabidos, de imediato ela deduz que estou do lado dos sábios, o que a leva para o lado dos sabidos. Tenho insistido, porém, inúmeras vezes, que todos nos estamos atravessados por essa contradição. Vivemos nela, a cada um cabendo, antes de tudo, tentar resolvê-la na prática de cada dia.

É por isso que o sábio aparece, dentre tantas outras coisas, como um "soldado das ciências e das luzes, transformando sua particularidade num momento do desdobrar da razão". Espanta-me que Marilena, conhecendo meus textos que vão na linha daqueles que abandonam a categoria de "razão", embora procurem estabelecer o sentido de certas racionalidades regionais, não seja sensível à ironia da caracterização. Se o sabido é malandro, o sábio, na sua pureza, aparece como soldado empunhando armas em nome duma racionalidade abstrata. Em vez de sorrir, minha colega se deixa simplesmente levar par sua enorme erudição e profundo senso didático, ensinando-nos elementos a respeito da burocracia weberiana, da aristocratismo platônico ou elaborando uma gema da pensamento analítico, vale dizer, toda aquela algaravia lógica sobre as classe dos sábios e dos subalternos, entoada na nota extensa, que diverte o especialista mas joga areia nas olhos do público em geral. Não atinjo o alcance da gozação, mas me maravilha essa capacidade de Marilena em retirar dum texto retórico e polêmico, pensamentos tão profundos, cujo tecido implica até mesmo uma lógica modal. Meu pobre e mortal intento consistiu tão-só em querer pincelar uma ruptura interna à vida acadêmica em geral, que se transforma numa polarização política quando outros interesses intervém.

Um poder limita o outro

Não me reconheço quando situa a oposição sábio-sabido sobre dois eixos: o da administração racional da ensino e da pesquisa e aquele da gestão duma instituição pública; de um lado, a razão administrativa burocrática, de outra, a gestão democrática. Ora, todo meu esforço visa transpor a polemica para outro nível, mostrar que a luta entre os sábios e os sabidos não vai dar em nada enquanto não se criar um terceiro foco. Não acho conveniente que o Estado se arvore em poder fiscalizador do saber, nem que a pesquisa e o ensino estejam submetidos às leis do mercado. Mas cabe sair da oposição entre Estado e livre iniciativa, entre, em termos caricatos, a universidade soviética e a americana, propondo o fortalecimento dum poder acadêmico, de órgãos de planejamento e avaliação inter-pares, que abram o espaço para instituições públicas gozando de certa independência do Estado. Tenho muito receio de que optar pela auto-gestão universitária, desvinculada dum sistema de mérito, entregaria a universidade que ai está a professores improvisados e alunos complacentes, prejudicando os grupos que ainda nela alimentam a inventividade. Daí crer na necessidade de multiplicar os poderes, fortalecer o poder dos intelectuais, anualmente comprimido entre a burocracia kafkiana e as demandas corporativistas do baixo clero, pois só essa multiplicação abrirá, de fato, o espaço para a democracia. Não há dúvida de que esse poder acadêmico também será atravessado pela oposição sábios-sabidos, mas, pelo menos, se cria um terreno a mais, onde os sábios possam levar a melhor. Em suma, reconhecendo a inevitabilidade do poder, cumpre multiplicá-lo, combinar a idéia liberal de que um poder limita o outro, com a proposta socialista de atingir uma gestão democrática dos fundos públicos. Em vez de tocar nessas questões, Marilena simplesmente opõe razão e democracia universitária sem que diga, pelo menos, o que entende por esta última. Ainda estamos nos tempos de simples palavras de ordem.

De acordo no detalhe

Defender na universidade posições apenas auto-gestionárias e libertárias não conduz a propostas concretas. No detalhe muitas vezes Marilena e eu estamos de acordo. Sou contra o regime de 40 horas sem dedicação exclusiva, quando importaria uniformizar dois regimes de trabalho, um tempo parcial e o outro de dedicação plena, obviamente ambos com salários decentes. Também sou, neste momento, favorável à eleição direta do próximo reitor da USP, pois não vejo como o atual Conselho Universitário, com estreita representatividade, poderia encampar aquele processo de renovação de que a universidade precisa. Sou, porém, inteiramente contra institucionalizar esse procedimento de eleição generalizada que abriria, então, as portas para um novo populismo, vale dizer, a confusão entre interesses sindicais e interesses propriamente acadêmicos, implicando assim a preponderância dos sabidos. Prefiro a eleição por um colégio eleitoral, integrando todos os órgãos colegiados da USP, de tal forma que haja uma representação ponderada, digamos, 50% de professores, 30% de alunos e 20% de funcionários.

Pecado e senso comum

Assistimos a um momento crucial da universidade brasileira. Se ela não assumir os riscos de sua reforma, o novo Estado cumprirá esta tarefa. Inicia-se outro ciclo de desenvolvimento capitalista para o qual os estabelecimentos de ensino superior não estão preparados. Haverá necessidade de centros de ensino e pesquisa dinâmicos, formando mão-de-obra especializada e novas tecnologias. Se essa demanda não for preenchida pelas universidades, o novo Estado, através de suas burocracias esclarecidas, pinçará centros de excelência que contarão com todos os recursos enquanto as universidades ficarão hibernando, unicamente pala satisfazer, formalmente, o reclamo das massas por educação. Quero pensar soluções concretas para problemas concretos, para que a universidade cumpra suas funções acadêmicas, e peço apenas que meus arguidores tragam a discussão para esse nível. Mas me parece que a batalha já está perdida, pois a universidade fica nas nuvem e não mostra capacidade para auto-reformar-se.


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