Fernando Pimentel de Souza
A Conferência da ONU, Habitat II, em Istambul é inspirada na catástrofe causada pela inflação humana nas grandes cidades, atingindo 50% da população mundial. Diante da incapacidade de se manter a qualidade de vida, o 1o. Mundo se contem e descentraliza a população etc. Mas, o 3o. Mundo desponta com 8 das 10 maiores aglomerações do mundo, das quais 2 são brasileiras, e a questão se agrava pela falta de política urbana e populacional. Na ânsia de atender à falta de moradia, a construção civil e as intervenções urbanistas podem explodir caoticamente num custo, que se multiplica devido à demolição e ao improviso, e a situação piora. Num trânsito saturado, já dizia Lerner, uma obra de arte só muda o ponto de engarrafamento, portanto é um desperdício. O cidadão prisioneiro deste trama é agredido e paralelamente pela falta de educação social é também agressor.
O tráfego trepidante toma conta das ruas, polui o ar e as inferniza de barulho. Em 1961 o ruído já era a maior causa de queixa na Inglaterra e destaca-se também noutras metrópoles brasileiras razoáveis, como Belo Horizonte e Curitiba, apesar de menos ruidosas do que Rio e São Paulo. As autoridades se dizem impotentes ou omissas, e o nível de ruído urbano vai se aproximado ao industrial devido sobretudo ao trânsito, que gera acima de 70 decibéis acústicos (dBA), presos nas construções, verdadeiras caixas acústicas, abafando a conversa civilizada a 55 dBA. O cidadão ensurdece, só entende com muito esforço das cordas vocais do interlocutor, sujeito a calos e afonia, quando grita pelo menos 3 dBA sobre o nível de fundo. Acima de 55 dBA começa a estressar, podendo atingir a exaustão com a barulheira atual. As pessoas ficam agitadas, agressivas, dormem mal, perdem o humor, se relacionam mal, aprendem menos, desequilibram-se psicologicamente, tornam-se também barulhentas e insensíveis, apesar de afetadas, esclerosam-se e se infartam mais, se desgastam sem nada produzir, rodando no vazio e acabam movidas a barulho sem destino. E tudo isto por uma forma de energia vibratória, que poucas pessoas julgam capaz de tanto mal, pois não é uma matéria que choca invasivamente e não se vê, mas interfere fundo no cérebro.
Os pobres urbanos, vivendo em condições subumanas, se brutalizam mais. Viver nas favelas ou ruas pode ser indiferente. O desemprego facilita a se marginalizar, com assaltos, homicídios, seqüestros, roubos, uso drogas etc, para os quais a vida não é pior, pois até curtem uma certa euforia, livrando-se da depressão, que no Brasil devem ultrapassar os 17% do 1o. Mundo e outro tanto de ansiosos.
A classe média, presa aos fetiches da vida, vai sofrendo a má qualidade de vida até o limite visto em Recife, Rio, São Paulo e Belo Horizonte, quando começa a emigrar. Valores gregários movem o "urbanóide" nesta atmosfera viciada e trepidante. Modismos de pontos, de vida social, de hábitos, prejudicando a saúde, o ritmo biológico, a formação da personalidade, a convivência urbana, dificultando a socialização, aumentando a alienação e os levando para comportamentos egoísta e sem ética, provocando a desagregação urbana.
O "urbanóide", emigrado da zona rural, leva hábitos da "Casa Grande" e da "Senzala". De um lado considera-se dono de seu pedaço, mais e mais restrito, não respeita o próximo na sua intimidade, no seu trabalho, no seu sono, na sua concentração mental etc e até na sua doença e sofrimento. Agride o vizinho com seu importúnio, torna a atmosfera enjoativa, rejeitada pelo outro, que não percebe como esse incômodo traspassa. Com hábitos do mocambo, a voz e ação silenciam, cúmplice do desaforo sofrido. Nossas cidades desterradas acabam sendo povoadas de almas penadas, desgarradas de séculos de atraso da civilidade necessária.
Tudo isto se reflete no imaginário do brasileiro sobre si, confirmado na enquete da Vox Populi que a maior decadência do Rio os leva a abandonar o mito de "malandro", 11% até preferindo a representação do mito paulista de "trabalhador e lutador", mas todos foram batidos pelo sentimento maior dos perdidos na vergonheira da corrupção ou dos políticos ou da pobreza. Entretanto, o maior contingente, 30%, não soube ainda se caracterizar, mostrando a perplexidade reinante. Corrobora a subida de alguns mitos alienantes como o desabafo no Carnaval, que perdeu a graça das antigas festas, e o apego aos ídolos no esporte ou na TV, que não preenchem o sentido da vida, só ajudam a passar o tempo. O "urbanóide" não se projeta continuamente no futuro, que chega avassalador nesta onda globalizante, conflitado, só espera que ele não seja assustador; não se sente como ser físico nem como cidadão de plenos direitos; não cobra dos políticos e administradores pífios, apesar da frustração; se ilude a cada nova promessa e se deixa enganar pela palavra fácil; insiste passivo numa esperança mágica que o futuro venha a lhe favorecer, sem ao menos se preparar para tanto. Desumanizado, não é mesmo cidadão urbano, pois só tem a forma, é um "urbanóide".