Estudo
demonstra herança portuguesa no mapa genético do Brasil
Os
Genes de Cabral
Por
INÊS NADAIS
Terça-feira,
21 de Março de 2000
Há coisas que não mentem - os genes, por exemplo,
prova definitiva de que a passagem dos portugueses pelo Brasil deixou marcas
profundas. Um estudo recente, apresentado na terceira edição
do fórum "Portugalia Genética", mostra que que a população
branca do Brasil resulta da mistura entre pais europeus maioritariamente
portugueses e mães ameríndias ou africanas.
Infinitos
cenários seriam possíveis, se se quisesse arrasar de vez
a herança portuguesa em terras brasileiras: banir a língua,
proibir a religião, demolir todos os exemplares da arquitectura
colonial, apagar insidiosas cumplicidades culturais. Provavelmente, a pegada
portuguesa continuaria intacta: a avaliar pelos resultados do estudo apresentado
por Sérgio Pena, investigador da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), na terceira edição do fórum "Portugalia Genética",
metade da população branca brasileira é portuguesa
pelo lado do pai.
Pensada à luz do lema "Milénios de Divergência,
Cinco Séculos de Mistura", a terceira edição da "Portugalia
Genética", evento organizado pelo Instituto de Patologia e Imunologia
Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), terminou no sábado.
O pretexto das comemorações dos 500 anos da descoberta do
Brasil serviu que nem uma luva à discussão de dois trabalhos
que lançam novas pistas para a compreensão daquele "melting
pot": além de Sérgio Pena, o fórum convidou Fabrício
Santos a contar a história genética do Brasil pré-cabralino.
Uma retrospectiva que funcionou como alicerce para o "Retrato Molecular
do Brasil" traçado pela equipa de Sérgio Pena, que recorreu,
aliás, à mesma metodologia: a utilização dos
polimorfismos do ADN - regiões do genoma humano que variam de indivíduo
para indivíduo - como marcadores de linhagem.
O estudo de Fabricio Santos permitiu identificar as características
distintivas do cromossoma Y específico dos indígenas brasileiros
(o YS199D), produto de mutações genéticas impostas
pela adaptação ao ambiente sul-americano. A maior surpresa
da pesquisa surgiu quando se concluiu que o mesmo Y é típico
de todas as tribos do continente americano, esquimós incluídos.
Daí até à descoberta da origem do cromossoma fundador
das Américas foi um pequeno passo: terá sido na Sibéria
que se formou a vaga migratória responsável pelo primeiro
povoamento do continente americano. A descoberta, reconhece o autor, é
insólita: "É como se todos os povos nativos da América
fossem irmãos por parte de um pai nascido há mais de dez
mil anos. Descendem de uma população pequena originária
da Sibéria Central que, ao passar o Estreito de Behring, se foi
expandindo para Sul pelas Américas fora", explicou ao PÚBLICO.
Paternidade europeia do Brasil branco
O trabalho de Sérgio Pena ilustrou as cenas dos capítulos
seguintes, servindo-se do ADN para confirmar teses de alguns historiadores,
que já assinalavam a natureza tri-híbrida da população
brasileira actual: "O processo de miscigenação do homem português
com a mulher índia começou logo após a descoberta.
Em meados do século XVI apareceram os escravos africanos, o terceiro
elemento de um caldeirão étnico que já estava a ferver",
lembrou na conferência de apresentação do seu "Retrato
Molecular do Brasil", que se encontra em fase de publicação.
O país terá continuado a fermentar naturalmente até
que, em meados do século XIX, "se notou uma coisa óbvia:
o Brasil era um país de negros e de índios, de gente escura".
Para a mentalidade positivista da época, a paleta brasileira não
parecia consentânea com a desejável evolução
rumo à vida civilizada. Solução: branquear o Brasil,
incentivando a imigração. Uma política cujos resultados
estão bem à vista: em 1872, havia três milhões
de brancos brasileiros; actualmente, são já 81 milhões,
cerca de 55 por cento da população.
De que forma a estrutura genética do povo brasileiro ilustra
este percurso histórico? A partir de uma amostra constituída
por indivíduos brancos de diversas regiões do país,
a equipa da UFMG chegou a uma surpreendente conclusão: "O Brasil
parece-se tremendamente com Portugal; não há diferenças
significativas entre cromossomas Y portugueses e brasileiros". Mas, apesar
da semelhança genética entre portugueses e brasileiros brancos,
o retrato molecular do Brasil reflecte uma diversidade superior: os anos
de ocupação moura e de convivência com judeus e cristãos-novos
depositaram vestígios no ADN português e, através dele,
no brasileiro, mas do outro lado do Atlântico impuseram-se também
as marcas das variadíssimas imigrações do século
XIX, quando milhares de italianos, espanhóis, alemães, japoneses
e sírio-libaneses atravessaram o oceano.
Quando o retrato do branco brasileiro se faz pelo lado da mãe,
a fotografia é outra: cerca de 60 por cento das matrilinhagens são
de origem ameríndia ou africana, o que confirma os casamentos entre
homens brancos e mulheres de pele escura. "O que mais me surpreendeu foi
a descoberta de que a reprodução se fez de forma brutalmente
unidireccional: filiação paterna europeia e filiação
materna ameríndia ou africana", comentou o investigador ao PÚBLICO.
Sem esquecer um agradecimento aos portugueses, pelos excelentes resultados
"da sua luxúria e da sua cobiça", substrato indispensável
da "exuberante diversidade genética do Brasil". Os números,
ainda que hipotéticos, são impressionantes: "Se 90 por cento
dos cromossomas Y do Brasil são europeus, 50 por cento serão
portugueses. No Brasil existem 40 milhões de cromossomas Y portugueses,
em Portugal só há 5 milhões", disparou Sérgio
Pena no final da conferência, que encerrou com um provocatório
aviso à navegação: "Os portugueses precisam de olhar
para o Brasil para se conhecerem. Somos os detentores da masculinidade
portuguesa".
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