Ou
mineiro ou uai - ALCIONE ARAÚJO
Deu-se o inesperado que mais poderia alegrar a
primavera que se avizinha. Seriam explosivas
revelações do jipe-robô da Curiosity ao mapear
a região marciana de Glenelg? A cura do câncer
vislumbrada pelo supermapa do genoma humano? Quem sabe o
fantástico salto tecnológico do superveloz iPad 4G?
Ou será que a Europa venceu a crise econômica e
recuperou a exuberância da produção
artística? O Brasil vai investir 10% do PIB em
educação e cultura? Pena, mas nada disso aconteceu.
Pode até não alegrar a
primavera, mas o inesperado encheu de ternura os últimos
corações ingênuos. Nos píncaros
neblinosos da Serra do Espinhaço, reduto íntimo das
Minas Gerais, foi descoberta nova espécie de
pássaro. Os ornitólogos Guilherme Freitas,
Fabrício Santos e Marcos Rodrigues, pesquisadores da UFMG,
levaram anos para confirmar a nova ave, não catalogada. Mas
pouco sabem da sua origem e da escolha do isolado lugar para viver
e procriar – eis o caráter aleatório e
imprevisível da origem da vida, que agita a curiosidade.
Tratam como um enigma evolutivo – o que instiga e traz à
luz as reconstituições de aves
pré-históricas por fragmentos arqueológicos
de Stephen Jay Gould (Dinossauro no palheiro, Lance de dados
etc.).
Tem o tamanho do sabiá, plumagem
amarelada no peito, mais escura no dorso, e eriçado topete
moicano, à Neymar. Vi a foto, sem a alegria de vê-lo
voar ou ouvi-lo cantar. Guilherme Freitas o fotografou pela
primeira vez em 2006. Supôs fosse espécie nativa da
Serra Geral, entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a milhares
de quilômetros dali. Conteve a curiosidade e se resignou
à ideia de que se tratava de exemplar aventureiro, valente
e incansável viajante daquela espécie sulista.
Porém a foto atiçava seu
espírito científico. Passou a procurá-lo com
sua equipe. Surgiram mais aves, casais, ninhos e filhotes. Eram
famílias residentes, não uma ave desgarrada!
Capturaram exemplares para análise comparativa do DNA, da
sua aparência e modo de cantar – imagino, com inveja, que
ouviram um canto diferente, que raros identificavam. Deu-se o
inesperado que mais poderia alegrar a primavera que se avizinha: a
50 quilômetros da moderna-civilizada-poluída Belo
Horizonte, nos altos gelados da Serra do Espinhaço, habitam
pássaros da novíssima espécie!
Difícil traçar a
evolução da nova espécie. “É
possível”, cogita o ornitólogo, “que áreas
mais baixas fossem propícias à sua presença
na Era do Gelo, há milhares de anos. Conforme o planeta
esquentou, a população da Serra do Espinhaço
teria ficado isolada e adquirido características
únicas.” Porém sua origem pode ser mais remota: “As
montanhas brasileiras são mais antigas se comparadas aos
Andes e há registro de ‘fósseis vivos’ no
Espinhaço”. Seu hábitat é a área
rupestre, a montanha pedregosa, rochas com fendas, plantas e
animais que só existem ali, e em nenhum outro lugar do
planeta. De musgos, gramíneas e líquens o pedreiro
do Espinhaço tira seu alimento. Do alto da montanha, solta
o incógnito canto que ecoa nas planícies. Do alto da
montanha, salta para o abismo num voo solitário de calma
plasticidade, enquanto exibe a leve plumagem que cobre o corpo
pequeno e frágil.
Em vez de pedreiro do Espinhaço, o novo
pássaro devia chamar-se mineiro ou uai. Ele é o
nativo inesperado que mais poderia alegrar a primavera que se
avizinha.
ESTADO DE MINAS
10/09/2012