18 de novembro de 1998




 


 
 

Somos todos um só
Pesquisa genética internacional mostra que não existem raças na espécie humana, derrubando qualquer base científica para a discriminação
 
 

NORTON GODOY

Se um pesquisador do IBGE bater à sua porta e perguntar qual é sua raça, você terá dúvidas para responder? Por mais banal que pareça, essa questão está gerando muita polêmica nos Estados Unidos. O presidente Bill Clinton chegou a formar uma comissão de alto nível para discuti-la. Isso porque, assim como os brasileiros, os americanos irão realizar no ano 2000 o último censo do século. Lá, porém, o resultado do perfil racial da população não é apenas mais um quesito estatístico. Influi, entre outras coisas, na distribuição de recursos aos órgãos federais e não-governamentais dedicados às chamadas minorias étnicas. Enquanto aqui você tem total liberdade de definir qual é sua raça, lá é o recenseador quem identifica o cidadão entre nada menos do que sete grupos raciais. Mas, se a questão já tinha implicações políticas, econômicas e culturais, ficou ainda mais difícil há poucos dias com a publicação de um amplo e meticuloso trabalho científico que chegou a uma conclusão taxativa: não existem raças na espécie humana.

Diferenças insignificantes Para chegar a esta afirmação, uma equipe de cinco cientistas estudou e comparou mais de oito mil amostras genéticas colhidas aleatoriamente de pessoas de todo o mundo. Segundo Alan Templeton, biólogo americano que dirigiu a pesquisa, diferentemente de todas as outras espécies de mamíferos, não há raças entre os humanos porque "as diferenças genéticas entre grupos das mais distintas etnias são insignificantes". Para que o conceito de raça tivesse validade científica, "essas diferenças teriam de ser muito maiores". Ou seja, não importa a cor da pele, as feições do rosto, a estatura ou mesmo a origem geográfica de qualquer ser humano (traços que distinguem culturalmente as etnias): geneticamente, somos todos muito semelhantes. Curiosamente, foi no Brasil que Templeton tomou consciência de que o conceito de raças poderia ser puramente cultural. "Em minha primeira visita ao Brasil em 1976, eu descobri que a classificação racial usada pelos brasileiros não era a mesma usada nos Estados Unidos; que a mesma pessoa poderia ser classificada de forma bem diferente em dois países", disse ele a ISTOÉ. "Aquela experiência me ensinou então que o conceito de raça não é necessariamente biológico." Templeton está voltando nesta segunda-feira 16 pela terceira vez ao Brasil, onde vai conhecer de perto uma pesquisa que está definindo o retrato genético da população brasileira (leia quadro). 
 

Foto: WASHINGTON UNIVERSITY/SAINT LOUIS
"Foi no Brasil que aprendi que o conceito de raça não é biológico, mas puramente cultural"

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"Infelizmente, a noção popular de raça sempre esteve tão vinculada à biologia que será difícil derrubá-la"

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"Não existem raças porque as diferenças genéticas entre as mais distintas etnias são insignificantes"

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Alan Templeton, biólogo americano

O trabalho realizado pela equipe de Templeton se somou a pesquisas anteriores que já vinham apontando essa unidade na espécie humana. "Infelizmente, a noção popular de raça esteve sempre tão vinculada erroneamente à biologia que será difícil derrubar essa crença", afirmou o cientista americano. "Mas acho que uma das formas mais úteis é justamente o cruzamento cultural que percebi no Brasil." Ele e sua equipe passaram os últimos dois anos usando as mais modernas técnicas da biologia molecular para analisar o chamado DNA mitocondrial (material genético herdado por todos nós, geração após geração, apenas pelo lado da mãe). Bem como o cromossomo Y do código genético (herdado apenas pelo lado do pai) e o DNA contido no núcleo de todas as células do organismo (herdado dos dois sexos). Esses dados, colhidos de doadores anônimos das mais diversas partes do globo, inclusive de índios brasileiros, foram então inseridos em computadores programados para análises criteriosas.

Tese brasileira Os resultados mostraram que, quando há diferença genética significativa, pelo menos 85% dela acontece entre indivíduos dentro de um mesmo grupo étnico (como os asiáticos, por exemplo). As diferenças entre etnias (brancos europeus e negros africanos, por exemplo), que seriam a base para haver raças distintas, são de apenas 15% ou menos que isso. "Um índice muito abaixo do nível usado para diferenciar raças dentro de qualquer espécie animal", explica Templeton. Isso quer dizer que dois brancos europeus diferem mais entre si do que em conjunto diferem de um africano. "Portanto, os humanos são a mais homogênea espécie que conhecemos", diz ele. A capa da ISTOÉ é uma representação dessa homogeneidade: uma jovem loira de olhos verdes é resultado do cruzamento das mais diversas etnias, que remonta aos mais longíquos antepassados humanos surgidos na África. Como lembra o médico geneticista brasileiro Sérgio Danilo Pena – que há anos é um dos cientistas que defendem a tese agora comprovada por Templeton –, "a nossa igualdade está justamente no fato de que todos somos igualmente diferentes".

Além da controvérsia no censo americano, os resultados dessa pesquisa genética repercutiram com mais força ainda no próprio meio acadêmico, fortalecendo algumas teorias e derrubando outras.

Origens "As diferenças genéticas das amostras colhidas nos dizem que, desde o princípio, as linhagens humanas rapidamente se espalharam para toda a humanidade, indicando que as populações sempre tiveram um grande grau de contato genético." Esses resultados mexem com duas teorias sobre a evolução humana que têm nomes associados a objetos – o Modelo Treliça e o Modelo Candelabro. As duas teorias concordam que a espécie humana surgiu na África há dois ou três milhões de anos e há 150 mil anos os descendentes daqueles primeiros humanos iniciaram um processo migratório rumo ao que é hoje a Europa e a Ásia. O Modelo Candelabro afirma, porém, que esse movimento migratório aconteceu numa leva só e se espalhou pelos continentes europeu e asiático, dando origem a três diferentes raças biológicas (a branca européia, a amarela asiática e a negra, que permaneceu no continente africano).

Para o Modelo Treliça, agora reforçado pelo trabalho de Templeton, a mobilidade humana foi muito maior do que se chegou a pensar. Os descendentes dos antepassados que migraram para a Europa e a Ásia fizeram o caminho de volta à África. E repetiram a saída e a volta algumas vezes. Assim, os genes humanos foram intercambiados globalmente, "não tanto por dom-juans individuais, mas através de ligações entre populações adjacentes". Isso quer dizer que "da mesma forma que você percebe a interligação da treliça quando olha para uma esteira de palha, com as modernas técnicas de estudo molecular você também encontra genes em uma determinada população compartilhados por toda a humanidade". Conclusão: "Não há ramos nem linhagens distintas; pela moderna definição de raça, não há raças na espécie humana", afirma categoricamente o biólogo americano.

Pele negra E por que as diferenças físicas entre humanos são aparentemente mais marcantes do que em outras espécies de mamíferos? Bom, segundo o professor Sérgio Pena, "se eu tiver acesso ao código genético de dez africanos, dez ameríndios e dez chineses, não vou conseguir saber qual é de que grupo geográfico". Os genes que determinam as características físicas, como cor de pele, são tão poucos que perdem significado se comparados ao número total de genes. Eles apenas representam adaptações biológicas a uma determinada geografia. O negro tem pele escura porque sua região de origem tem um sol muito forte. Como o excesso de sol é nocivo à saúde, a pele escura protege o organismo. De acordo com Steve Jones, professor de Genética da University College de Londres, a cada geração há uma chance, pequena porém perceptível, de ocorrer um erro genético que causa variações na cor da pele. Ao migrar para ambientes onde o sol é mais fraco, como a Europa, os humanos que nasceram com pele mais clara foram beneficiados pela chamada seleção natural. Nesse clima, a pele clara sintetiza melhor a vitamina D, que evita que as pessoas fiquem raquíticas. Como dizia o naturalista Charles Darwin (1809-82), "a evolução é uma série de erros bem-sucedida".

Ação feminina Se os resultados da pesquisa de Templeton derrubam as razões científicas da discriminação racial – e, espera-se, a consequente violência que ela produz –, eles também sugerem um cenário menos hostil para o que foi a própria história da evolução humana. Segundo alguns teóricos, cada nova leva de migração que saía da África aniquilava, na disputa pelos recursos naturais, os descendentes das levas anteriores já estabelecidos na Europa e Ásia. "Nossos dados mostram que isso não foi bem assim, tal o compartilhamento de genes produzido desde então. Esses genes foram espalhados através da reprodução, que não aconteceria se houvesse aniquilamento – fez-se mais amor do que guerra", afirma Templeton. Corroborando os resultados de seu trabalho, a revista científica Nature divulgou outra pesquisa que mostra que as mulheres foram mais eficazes que os homens no ato de espalhar seus genes. Mark Seielstad, da Escola de Saúde Pública de Harvard, juntamente com os pesquisadores Luca Cavalli-Sforza e Eric Minch, da Escola de Medicina de Stanford, também analisaram amostras genéticas de várias populações. E concluíram que o cromossomo Y, aquele que é transferido, geração após geração, apenas pelos pais, é muito mais localizado do que o DNA mitocondrial das mães. "Um sinal interessante que mostra que os homens não migraram tanto quanto as mulheres ao redor do mundo", indica Seielstad. Uma explicação plausível para isso, dizem, talvez seja o fato de que as mulheres acabavam sendo levadas para a comunidade dos maridos. Outro fator, em menor escala, pode ter sido a existência de homens com várias mulheres, o que diminuiria a variação do cromossomo Y.

Racismo Mas o que diz quem está na linha de frente do combate à chamada discriminação racial? Para a senadora Benedita da Silva, negra de 56 anos, eleita vice-governadora do Rio de Janeiro, "a pesquisa pode ser comparada a uma lei. Se a lei existe, mas não há vontade política de usá-la como elemento promocional de igualdade entre os seres humanos, ela acaba no arquivo" diz. "Antes de mais nada, é preciso também acabar com essa história de minorias e diferenças. Minoria é uma definição ideológica. Eu não quero ser diferente e essa ideologia não foi criada por mim." Esse pensamento não é compartilhado por Francisco Oliveira, editor da revista Raça, que não pretende mudar o nome da publicação mesmo sabendo que não existem raças na espécie humana. "Pode estar comprovado cientificamente, mas no âmbito cultural não muda nada. A constatação não extrapola imediatamente para o comportamento social", disse. Para o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, os resultados dessa pesquisa "podem reformular os ensinamentos teológicos, já que as diferenças raciais fazem parte do conceito de criação de Deus".

Mapa genético Hoje, quase todas as pesquisas que tratam da constituição genética de várias populações são um subproduto de uma empreitada científica mais ambiciosa: o Projeto Genoma Humano. Iniciado em 1994 e tocado por equipes de geneticistas de todo o mundo – no Brasil, um de seus representantes é o professor Sérgio Pena –, ele pretende ter decifrado até o ano 2005 todas os três bilhões de letras do código genético que formam os 60 mil genes de um ser humano. Da mesma forma que as partículas atômicas são as unidades básicas da matéria, os genes são as unidades básicas da vida. Decifrar a sequência desse código é uma tarefa relativamente fácil; difícil será encontrar o significado dele. Pode-se dizer que esse código é a receita, a fórmula que instrui o nascimento, crescimento, funcionamento e morte de qualquer organismo vivo. Daí a promessa do projeto de favorecer imensamente a pesquisa da cura para as mais terríveis doenças que afligem a humanidade.

Além desse imenso benefício médico, muitos de seus participantes não escondem uma outra ambição, mais filosófica. Esses cientistas acreditam que, à medida que se descobrir o significado do código genético humano, será possível chegar cada vez mais perto da verdadeira natureza humana. Particularmente em tudo o que ela tem de única. Até hoje, por exemplo, não se sabe exatamente por que apenas os humanos, entre tantos bilhões de espécies que habitam o planeta, desenvolveram uma inteligência capaz de buscar a razão de sua própria existência. É uma indagação que, por enquanto, tem encontrado mais respostas na religião do que nas ciências.

Homem macaco A saída talvez esteja no chimpanzé, nosso primo na escala evolutiva dos primatas. A empresa americana GenoPlex, que utiliza chimpanzés na busca de cura para certas doenças, está concluindo o que se poderia chamar de Projeto Genoma do Macaco. Ao sequenciar o DNA de um chimpanzé e comparar com o humano, será possível, em tese, identificar a diferença entre o homem e o animal mais próximo dele. Supõe-se que tal diferença não passe de poucas centenas de genes, sendo que não mais que 50 seriam os responsáveis pela inteligência característica dos humanos.

Tal número é produto de um raciocínio aparentemente simples: chimpanzés e humanos tomaram rumos evolucionários distintos há apenas cinco milhões de anos – um piscar de olhos no tempo evolucionário. Resultado: seus DNAs são 98,4% idênticos. Mas, todo esse otimismo científico não esconde um lado obscuro, apontado pelo próprio diretor do Projeto Genoma, o geneticista americano Francis Collins: "Quanto mais aprendemos sobre os genes que são cruciais para a característica única dos humanos, maior a tentação de produzir humanos que tenham a melhor das combinações genéticas." Ele mesmo diz que prefere nem pensar nas consequências de outra experiência aparentemente mais maluca, que tentasse introduzir genes humanos em chimpanzés.

Colaborou Rita Moraes

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