Edição Atual 78  - Revista FAPESP

Paleontologia

Caminhos tortuosos         

O mais antigo fóssil de hominídeo sugere que nossa história evolutiva é mais complexa do que se imaginava
 

"É muito emocionante ter em minha mão o começo da linhagem humana." Absolutamente convencido da importância de sua descoberta, o paleontólogo francês Michel Brunet, da Universidade de Poitiers, era puro contentamento no dia 12 de julho, ao exibir publicamente, pela primeira vez, na França, um crânio e os fragmentos de mandíbula encontrados por sua equipe num deserto do Chade, na África Central, após 25 anos de escavações. Com 6 a 7 milhões de anos, o Sahelanthropus tchadensis ou Homem de Toumai - esperança de vida na língua local - é o mais antigo e o mais primitivo precursor da espécie humana, que reúne traços tanto de hominídeos como de macacos.

É um dos achados mais importantes dos últimos cem anos por ter vivido num período crítico, em que houve a separação entre hominídeos e macacos e do qual se conhece muito pouco, e por derrubar os paradigmas sobre a evolução do Homo sapiens : em vez da desejada linearidade, avança agora a idéia de que o desenvolvimento humano foi caótico, com desvios e atalhos, a partir de um ponto inicial, representado por um grupo como o dessa linhagem que acaba de surgir.

Principal assunto da edição da Nature que começou a circular na véspera da apresentação de Brunet, Toumai não apenas jogou a origem do homem 1 milhão de anos para trás - antes dele, o ancestral mais remoto era o Orrorin tugenensis , descoberto em 2000, com 6 milhões de anos. O crânio que emergiu das areias do Chade mostrou também que o processo evolutivo do Homo sapiens nada tem de especial e passou pelos mesmos dramas que qualquer outra espécie.

"Nossa história nem de longe é linear", diz Hilton Silva, antropólogo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Caiu a árvore com um tronco único que representa nosso passado e, no lugar dela, cresce um arbusto, com ramos surgindo a todo momento, crescendo em todas as direções e conectando-se entre si. Também não é mais possível sustentar que tenha havido um elo perdido: "Quanto mais espécies são descobertas, vemos que não há um elo, mas vários grupos entre o homem de hoje e os macacos", lembra Silva.

Mas ficou mais claro que de cinco a dez linhagens de hominídeos devem ter coexistido - alguns mais parecidos com macacos, outros com os futuros humanos. "Muitos pesquisadores já haviam sugerido que existiram muitas linhagens ou caminhos na história evolutiva humana, já que a maioria dos processos evolutivos consiste de muitas novas adaptações, das quais somente poucas sobrevivem", comenta Eric Delson, paleontólogo do Museu Americano de História Natural e da Universidade de Nova York, Estados Unidos.

"Mas agora temos uma prova." Delson só hesita ao reiterar o valor de Toumai por considerar que há dois achados relativamente recentes ainda não devidamente avaliados: o Ardipithecus ramidus , descoberto em 1994 na Etiópia, com 4,4 milhões de anos, que agora se supõe não tenha sido inteiramente bípede; e o Orrorin tugenensis , cuja importância pode se tornar mais clara quando se encontrarem exemplares mais preservados que o atual, do que só há fragmentos de crânio.

Toumai exibe uma inédita combinação - ou mosaico - de traços primitivos e avançados: a face achatada e os dentes caninos o aproximam dos hominídeos, enquanto a caixa craniana equipara-se em tamanho à de um pequeno chimpanzé. De costas, provavelmente parecia um macaco. Saindo das areias do deserto para as mãos dos pesquisadores, tornou-se ainda mais importante que o Australopithecus africanus , que em 1925 atestou a origem africana do Homo sapiens . É o mosaico mais antigo, mas não o único: o Kenyanthropus platyops , descoberto no Quênia em 1999, também combina traços de hominídeos e de macacos - só que viveu bem depois, entre 3,5 e 3,2 milhões de anos.