A primeira brasileiraA reconstituição de um crânio de 11 500 anos, o mais antigo da América, revoluciona as teorias sobre a ocupação do continenteDaniel Hessel Teich
Luzia era uma mulher baixa, de apenas 1,50 metro de altura. Comparada aos seres humanos atuais, tinha uma compleição física relativamente modesta para seus 20 e poucos anos de idade. Sem residência fixa, perambulava pela região onde hoje está o Aeroporto Internacional de Confins, nos arredores de Belo Horizonte, acompanhada de uma dúzia de parentes. Não sabia plantar um pé de alface sequer e vivia do que a natureza agreste da região lhe oferecia. Na maioria das vezes se contentava com os frutos das árvores baixas e retorcidas, uns coquinhos de palmeira, tubérculos e folhagens. Em ocasiões especiais, dividia com seus companheiros um pedaço de carne de algum animal que conseguiam caçar. Eram tempos difíceis aqueles e Luzia morreu jovem. Foi provavelmente vítima de um acidente, ou do ataque de um animal, e não teve direito nem mesmo a sepultura. O corpo ficou jogado numa caverna, enquanto o grupo seguia em sua marcha errante pelo cerrado mineiro. Durante 11.500 anos, Luzia permaneceu num buraco, coberta por quase 13 metros de detritos minerais. Agora, passados mais de 100 séculos, a mais antiga brasileira está emergindo das profundezas de um sítio arqueológico para a notoriedade do mundo científico. Desenterrado em 1975, o crânio de Luzia é o mais antigo fóssil humano já encontrado nas Américas. Transportado de Minas Gerais para o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, permaneceu anos esquecido entre caixas e refugos do acervo da instituição. Foi ali que o arqueólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, USP, o encontrou alguns anos atrás. Ao estudá-lo, fez descobertas surpreendentes. Os traços anatômicos de Luzia nada tinham em comum com o de nenhum outro habitante conhecido do continente americano. A medição dos ossos revelou um queixo proeminente, crânio estreito e longo e faces estreitas e curtas. De onde teria vindo Luzia? Seria ela remanescente de um povo extinto, que ocupou a América há milhares e milhares de anos e acabou dizimado em guerras ou catástrofes naturais? A hipótese de Walter Neves acaba de ser reforçada por um trabalho feito na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Com a ajuda de alguns dos mais avançados recursos tecnológicos, os cientistas ingleses reconstituíram pela primeira vez a fisionomia de Luzia. O resultado é uma mulher com feições nitidamente negróides, de nariz largo, olhos arredondados, queixo e lábios salientes. São características que a fazem muito mais parecida com os habitantes de algumas regiões da África e da Oceania do que com os atuais índios brasileiros. Massacre – A reconstituição da face de Luzia, que VEJA publica com exclusividade, foi encomendada à Universidade de Manchester pela rede de televisão inglesa BBC. É a principal atração de um documentário que será exibido na Inglaterra na próxima quarta-feira, 1º de setembro. O rosto foi modelado em argila mediante um minucioso trabalho de pesquisa que incluiu exames do crânio por meio de tomografias computadorizadas. A imagem final da primeira brasileira, obtida nesse processo, é mais do que uma simples curiosidade científica. Ela está produzindo uma revolução nas teorias a respeito da ocupação da América pelos seres humanos. Até algum tempo atrás, acreditava-se que antes de Colombo e de Cabral o continente americano tivesse sido ocupado uma única vez, pelos antepassados dos índios atuais. Eles teriam saído da região onde ficam hoje a Mongólia e a Sibéria, cerca de 12.000 anos atrás. Atravessaram o Estreito de Bering, entre a Ásia e a América do Norte, valendo-se de uma ponte de gelo ainda remanescente da última era glacial. Aos poucos, espalharam-se pelo continente, até chegar à Patagônia, passando pelo Brasil. A descoberta de Luzia derruba essa explicação. Ela mostra que antes dessa marcha empreendida há 12 000 anos uma outra leva, bem mais antiga, chegou à América. Luzia seria descendente desse grupo. Aparentados dos atuais aborígines australianos, esses primeiros colonizadores teriam saído do sul da China atual e atingido o continente americano cerca de 15.000 anos atrás – três milênios antes da segunda leva migratória. Como nessa época a Idade do Gelo ainda não havia chegado ao fim, teriam usado canoas para fazer a navegação costeira e contornar os enormes maciços glaciais que bloqueavam a passagem entre a Ásia e a América do Norte. Viveram aqui milhares de anos, isolados do resto do mundo, até desaparecer na disputa por caça e território com a leva migratória seguinte, esta sim ancestral dos índios de hoje. Luzia é um apelido dado por cientistas há pouco mais de
um ano, quando se comprovou que era o crânio mais antigo encontrado
no continente americano. Um repórter perguntou a Walter Neves se
o fóssil seria a versão americana de Lucy, a mais famosa
ancestral humana, de 3,2 milhões de anos, achada na Etiópia
e hoje em exposição no Museu do Homem em Paris. Neves respondeu
que, devido à procedência brasileira, a descoberta estava
mais para Luzia do que para Lucy. Desde que alcançou notoriedade
internacional, a caveirinha ganhou lugar de honra no Museu Nacional. Também
é lá que deve ser exibida, a partir do mês que vem,
sua face reconstituída na Inglaterra.
Tesouro na caverna – O grupo do qual Luzia fazia parte é conhecido como "Homens de Lagoa Santa", nômades coletores que viveram na região onde hoje se localiza esse município, perto de Belo Horizonte. Os primeiros ossos foram recolhidos ali pelo naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, na primeira metade do século passado. Boa parte deles se encontra atualmente no museu da Universidade de Copenhague. Até as pesquisas feitas pelo arqueólogo Walter Neves ninguém sabia a dimensão do tesouro que as cavernas escondiam. "Quando fizemos os primeiros estudos com os crânios, ainda nos anos 80, ficamos boquiabertos com as comparações", lembra Neves. "Era inconcebível que tivéssemos crânios antigos de negróides. O esperado era encontrarmos populações mongolóides, que são as características dos ancestrais dos nossos índios." Nos últimos anos, a nova tese sobre a ocupação da América, formulada por Walter Neves e seu parceiro de pesquisa Héctor Pucciarelli, ganhou força com a descoberta de outros crânios humanos em diversos pontos do continente. São todos de origem mais recente do que a de Luzia, mas, igualmente, apresentam características não compatíveis com as dos mongolóides e índios atuais. É o caso do homem de Kennewick e de Spirit Caveman, achados na América do Norte e datados de cerca de 9.000 anos. As mesmas configurações cranianas de Luzia foram encontradas em fósseis de cerca de 9.000 anos perto da cidade colombiana de Tequendama e na Terra do Fogo, do outro lado do Estreito de Magalhães, nos confins da América do Sul. No Brasil, já se sabe que no município de Monte Alegre, no Pará, escarpas rochosas eram habitadas havia mais de 11.000 anos. Lá, numa região chamada Pedra Pintada, a arqueóloga americana Anna Roosevelt, uma das maiores especialistas em arqueologia amazônica do mundo, encontrou uma coleção impressionante de pinturas rupestres. No vale do Rio Peruaçu, norte de Minas, também foi localizada pelo arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais, uma belíssima coleção de desenhos e pinturas nos paredões rochosos que datam da mesma época. Todas essas novidades arqueológicas ajudaram a reformular as
antigas teorias sobre a ocupação da América. Hoje,
os principais centros de estudos já trabalham com a hipótese
de que quatro ondas migratórias vindas da Ásia chegaram ao
continente americano. A primeira é a defendida por Neves e Pucciarelli.
A segunda onda é formada pelos povos mongóis, de 12.000
anos atrás, que deram origem aos índios de hoje. A terceira
é dos chamados nadenes, povo que se estabeleceu na costa oeste americana.
A quarta é a corrente migratória composta pelos esquimós.
Os arqueólogos calculam que essas duas últimas chegaram à
América entre 5.000 e 10.000
anos atrás.
Quando foi resgatado, em 1975, do sítio arqueológico de Lapa Vermelha, Lagoa Santa, o crânio de Luzia estava emborcado, com a arcada superior voltada para cima. Um pouco mais abaixo, na direção do fundo da gruta, a equipe da qual fazia parte o arqueólogo André Prous achou outros ossos: a mandíbula, costelas, fragmentos das pernas e dos braços. Ao todo, recolheram um terço de um esqueleto humano completo. "Não era uma sepultura como outras que já havíamos encontrado", relembra Prous. "O corpo foi atirado no fundo da caverna ou caiu lá acidentalmente." Esses dados, um tanto quanto precários, dificultaram, na ocasião, a datação do achado a partir das camadas de depósitos geológicos da gruta – um método muito utilizado em outros sítios arqueológicos. Logo depois, Prous achou outro sítio arqueológico, a cerca de 60 quilômetros de distância de Lagoa Santa, no sopé da Serra do Cipó, em um lugarejo chamado Santana do Riacho. De lá saíram dezenas de esqueletos com características idênticas e contemporâneos ao de Luzia. Também foram identificadas algumas ferramentas, como pedras de quartzo lascadas que funcionavam como pontas de flecha e raspadeiras. São hoje as pistas que os cientistas têm para decifrar o enigma dos "Homens de Lagoa Santa". A partir da quantidade de ossos encontrados em Lapa Vermelha e Santana do Riacho, os arqueólogos estimam que o grupo que vivia na região não ia além de umas poucas dezenas de indivíduos. Na época, a temperatura da região era cerca de 5 graus Celsius mais fria do que a atual. Ainda passeavam por ali animais extintos como a preguiça-gigante, ou megatério, e um bicho semelhante ao tatu, chamado gliptodonte, e até mesmo mastodontes. E também os tigres-dentes-de-sabre, predadores terríveis da fase final do pleistoceno. Segundo Prous, não é possível dizer se os grandes animais eram caçados pelos homens de Lagoa Santa. Pesquisas conduzidas pelo arqueólogo Neves nos ossos encontrados
por Prous mostraram resultados intrigantes quanto aos hábitos alimentares
desse povo. A análise da dentição dos fósseis
permitiu cotejar o número de cáries com uma tabela internacional
para medir o perfil alimentar. Por essa tabela, índice de cáries
de zero a 2% do total dos dentes indica um perfil de povos caçadores
e coletores, com baixíssimas taxas de açúcar na dieta.
Entre 2% e 10% indica uma fase de transição, em que há
uma agricultura incipiente, com plantas que já introduzem açúcares
na dieta. Com 30% de cáries chega-se ao perfil do índio brasileiro,
com uma agricultura já estabelecida. Entre os homens de Lagoa Santa
obteve-se um índice de 10%. Então eles tinham agricultura
incipiente? Não. Os primeiros indícios de agricultura entre
os povos mais antigos do Brasil datam de 4.000
anos. O grupo de Luzia tinha cáries porque comia mais vegetais do
que carne e vivia mais da coleta do que da caça.
A nova face dos primeiros habitantes do continente vem à tona num momento em que as origens da humanidade estão sendo sucessivamente chacoalhadas por outras descobertas. Nunca a arqueologia, a genética, a biologia e a antropologia foram tão longe na escala do tempo em busca dos ancestrais humanos. Desde 1994, quatro novas espécies de hominídeos foram acrescentadas à árvore da evolução, entre elas a mais antiga já encontrada, a do Ardipithecus ramidus, de 4,4 milhões de anos. Testes de DNA contabilizaram as variações genéticas entre homens e chimpanzés no decorrer do tempo e apontaram que a humanidade se separou dos macacos num período entre 4 e 6 milhões de anos atrás. Descobriu-se o mais antigo sítio com ferramentas, na África, datado de 2,5 milhões de anos, e também que entre 1 milhão e 2 milhões de anos atrás o cérebro dos possíveis ancestrais humanos cresceu drasticamente, devido à introdução de uma dieta mais rica em proteínas na alimentação. Enigmas insolúveis – Outras pesquisas têm oferecido respostas para enigmas que até então eram considerados insolúveis. Com o uso da análise comparativa de DNA, o geneticista Fabrício R. Santos e seu grupo da Universidade Federal de Minas Gerais, conseguiu encontrar o lugar de onde saíram os antepassados dos índios americanos. Há cinco anos, ele identificou o código genético comum a dezessete povos indígenas americanos. Depois, localizou o mesmo padrão genético em populações vizinhas do Lago Baikal, na Sibéria. Agora, Sérgio Pena do mesmo grupo da UFMG promete voltar seu arsenal de alta tecnologia em direção aos homens de Lagoa Santa. Enviou amostras ósseas recolhidas na região para o Instituto Max Planck de Antropologia, em Leipzig, na Alemanha, dirigido pelo especialista Svante Pääbo, o mesmo que isolou o DNA de um homem de Neandertal, em 1997. O objetivo é identificar ossos dos parentes de Luzia que possam conter amostras do código genético em condições de análise. Pena quer comparar o DNA de mais de 10.000 anos atrás com o dos índios atuais. Só assim será possível saber se existe uma fração mínima, por menor que seja, de Luzia entre nós.
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Com reportagem de Pablo Nogueira
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