A ORIGEM DAS IDÉIAS DE DARWIN



O que nos chama a atenção, quando observamos o mundo vivo em nossa volta, é a grande diversidade dos seres vivos. Os animais e vegetais que nos cercam são, inicialmente, muito pouco parecidos entre si. Essas diferenças podem nos fazer supor que não existam relações de parentesco entre eles e que tais seres vivos tenham se originado de forma inteiramente independente.
De certa maneira, essa concepção da criação dos seres vivos prevaleceu durante muitos séculos entre os homens. Admitia-se a versão bíblica sobre a criação do universo, dos seres vivos e do homem.
Com a descoberta de novos continentes, e à medida que estes continentes começaram a ser explorados, a hipótese da diversidade dos seres vivos cedeu lugar a um crescente reconhecimento das semelhanças entre espécies diferentes. Passava a ser cada vez mais difícil conceber que tantos seres vivos, muito parecidos entre si, pudessem ter se originado de maneira independente. Começava a brotar a idéia de uma origem em comum para esses seres vivos.

O cientista francês Jean-Baptiste Lamarck foi um dos primeiros que procurou explicar a diversidade animal através da ação prolongada de um mecanismo evolutivo.

Lamarck baseava-se em duas leis básicas. A primeira, ainda válida, dizia que o uso contínuo de um órgão o desenvolve, enquanto um órgão que não seja solicitado tende a regredir ou desaparecer. A segunda lei postulava que essas alterações orgânicas são transmitidas aos descendentes. (Cf. LAMARCK, J.-B. 1971, p. 202-207). Aqui reside a fragilidade do pensamento de Lamarck.

Desprezando grande quantidade de evidências já reunidas na época da publicação de seu trabalho, Lamarck admitia a “herança dos caracteres adquiridos”. Deste a Antigüidade já se sabia que as amputações e ferimentos dos soldados, por exemplo, não eram transmitidos à seus descendentes.

No ano em que Lamarck publicava sua obra clássica Philosophie Zoologique, nascia na Inglaterra Charles R. Darwin. Era o ano de 1809.

Em 1831, o jovem naturalista Charles Darwin partia à bordo do H. M. S. Beagle, com a finalidade de fazer uma série de levantamentos cartográficos.

Além das observações cartográficas, da flora e da fauna, Darwin coletou muitos fósseis, sobretudo na América do Sul. Isto o colocou em contato com duas dimensões da diversidade dos seres vivos. A primeira, chamada diversidade horizontal, observada nas variações de animais e plantas à medida que nos deslocamos no espaço; a segunda, dimensão vertical, são as variações no tempo, que estão documentadas nos fósseis. Darwin impressionou-se particularmente com os fósseis de gliptodontes que encontrou na Argentina, muito parecidos com os tatus, mas já extintos. Na Introdução do Origem podemos ler:

“Quando a bordo do H. M. S. Beagle, no qual servi como naturalista, fiquei muito impressionado com certos fatos referentes à distribuição dos seres vivos existentes na América do Sul e às relações geológicas entre a fauna e flora atual e extinta daquele continente. Esses fatos a mim me pareceram lançar alguma luz sobre a origem das espécies __ ‘mistério dos mistérios’, conforme a definição de um dos nossos maiores filósofos. Logo após meu regresso ao lar, em 1837, ocorreu-me que talvez pudesse ajudar a esclarecer essa questão, através da paciente acumulação e do estudo de toda sorte de fatos porventura ligados ao tema”.(DARWIN, C., 1985, p. 43).

De regresso à Inglaterra, Darwin dedicaria muitos anos analisando o vasto material coletado. Dessa análise saltava-lhe aos olhos a imensa diversidade de formas. As variações encontradas eram graduais. Os fósseis se modificavam ao longo das camadas: quanto mais recentes, mais parecidos com as formas atuais. Os pássaros de uma ilha que se alimentavam de grãos possuíam o bico curto e forte. Numa ilha próxima, pássaros muito parecidos que se alimentavam de vermes escondidos em túneis nos troncos das árvores possuíam bicos longos, perfeitamente adaptados para capturar o alimento. Era cada vez mais evidente a idéia de que os seres vivos modificavam-se com o tempo, diversificavam-se __ em outros termos, evoluíam[1].

Entretanto, todas essas observações não eram suficientes para comprovar a ocorrência da evolução. Era necessário encontrar um mecanismo que explicasse como essas modificações ocorrem. Podemos ler no texto de Darwin

“Analisando-se o problema da origem das espécies, é perfeitamente concebível que o naturalista, refletindo sobre as afinidades mútuas dos seres vivos, suas relações embriológicas, sua distribuição geográfica, a sucessão geológica e outros fatos que tais, chegue à conclusão de que as espécies não devam ter sido criadas independentemente, mas que, assim como as variedades, descendem de outras espécies. Não obstante, tal conclusão, mesmo que bem fundamentada, seria insatisfatória, a não ser que se pudesse mostrar como teriam sido modificadas as incontáveis espécies existentes neste mundo, até chegarem a alcançar a perfeição estrutural e de co-adaptação que tão efetivamente excita a nossa admiração”. (DARWIN, C., 1985, p. 44).

Foi em outubro de 1838 que Darwin encontrou a chave do obscuro problema, lendo o livro de Thomas Malthus sobre populações (cf. DARWIN, C., 1995, p. 40). Segundo o tratado de Malthus, existe um acentuado descompasso entre o crescimento de uma população e o crescimento da produção de alimentos. Enquanto as populações cresciam em progressão geométrica, a oferta de alimentos crescia em progressão aritmética, ou seja, era impossível alimentar todos os indivíduos das novas gerações. Darwin conclui que sendo impossível alimentar a todos, alguns teriam que morrer precocemente, antes de atingir a idade da reprodução. Deveria haver, assim, uma luta pela sobrevivência (struggle for existence).Se alguns indivíduos tivessem características vantajosas, eles teriam maiores chances de sobrevivência. Assim, tais características tenderiam a ser preservadas, enquanto as características desfavoráveis seriam destruídas. (cf. DARWIN, C., 1995, p. 40).

Em 1844, Darwin escreveu a seu amigo Hooker, dizendo:

"Li inúmeros livros sobre agricultura e horticultura e não cessei de coligir fatos. Finalmente surgiram alguns raios de luz e estou quase convencido (em oposição à opinião com a qual comecei) de que as espécies (é como confessar um homicídio) não são imutáveis”. (DARWIN, C., Carta a Sir Joseph Hooker, de 11 de Janeiro de 1844, In: DARWIN, F 1995, p. 173)

O grande mérito de Darwin foi o de compreender como as mudanças poderiam ocorrer nas espécies. As populações podiam, teoricamente, crescer muito rapidamente. No entanto, isto não era observado; as populações se mantêm num nível mais ou menos constante. Dessa forma, deve existir uma luta pela sobrevivência. Uma vez que existem indivíduos diferentes, portadores de características favoráveis, haverá uma seleção natural dos mais aptos. Ao longo do tempo, aquelas diferenças desfavoráveis irão desaparecer. Pelo fato de os mais aptos deixarem maior número de descendentes, com maior potencial de sobrevivência, eles acabarão prevalecendo. Ao longo do tempo, essas diferenças iriam se acumulando, a ponto de, nas gerações futuras, se constituírem novas espécies, diferentes dos tipos originais.

Esta “estória” que acabamos de contar mostra que os conceitos essenciais de Darwin são apresentados de maneira bastante coerentes e numa seqüência gradativa. Não aparecem contradições, hesitações ou falhas graves. Além disso, vemos que Darwin viajou pelo mundo afora, durante longos cinco anos, e que coligiu assim os fatos necessários para elaborar a sua teoria. O darwinismo parece ser uma teoria que foi “crescendo”, amadurecendo lenta e gradualmente, dentro de um processo que se parece muito com o seu próprio objeto de estudo: a lenta e gradual evolução dos seres vivos. A teoria, de uma certa forma, se apresenta como um tipo de produto da natureza, e não do homem. Notamos também que a teoria pretende ser inteiramente independente da influência da sociedade da época. Ela se submeteria apenas à lógica da natureza. E capturar esta lógica parecia ser apenas uma questão de observação e método.

No entanto, o que a análise mais detalhada da obra de Darwin nos revela é uma série de hesitações, contradições e falhas. A par disso, traz em seu interior todos os elementos que caracterizam o contexto de descoberta, passando a ter as feições de um produto do homem mais que da natureza. Vejamos o que essa análise pode nos revelar e passemos a “contar uma outra estória”.

Apesar de Darwin ter manifestado desprezo às idéias de Lamarck, como podemos perceber nesta passagem,

“Um dia, quando passeávamos juntos, [o Dr. Grant] irrompeu em comentários elogiosos acerca de Lamarck e de suas idéias sobre a evolução. Fiquei a ouvi-lo mudo e surpreso, sem que suas opiniões produzissem efeito algum sobre mim”. (DARWIN, C., 1995, p. 13).

jamais as contestou, pelo menos em seus elementos centrais. O Origem é um livro lamarckista. Este é um fato que os seguidores de Darwin omitiram deliberadamente. No Capítulo I do Origem, podemos ler: “O hábito também tem uma influência decisiva, como no período da floração, quando as plantas são transportadas de um clima para outro” (DARWIN, C., 1985, p. 49). As plantas que floriam em abril na Inglaterra, passavam a florir em outubro se fossem levadas para a Argentina, por exemplo. Darwin entendia que a época de floração das plantas era determinada geneticamente. Mudando-se o clima, a planta adquiria novos hábitos. Tomando-se as sementes dessa planta, fazendo-as germinar no novo ambiente, observava-se que sua época de floração também havia mudado. Isso comprovava, para Darwin, a suspeita de que esse era um fenômeno controlado pela herança, e que a mudança dos hábitos alterava o patrimônio hereditário dos seres vivos. É de notar-se que, ao que tudo indica, não era importante, para Darwin, que a floração ocorresse sempre na primavera!

Em relação aos animais, os pensamentos de Darwin eram mais claros e, conseqüentemente, mais parecidos com os de Lamarck. Ainda no Capítulo I, podemos ler:

“Nos animais, seu efeito é mais notável. Já observei no pato doméstico, por exemplo, que os ossos da asa pesam menos e os ossos da perna pesam mais que os do pato selvagem, em relação ao peso total de seus esqueletos __ acho que tal modificação poderia seguramente ser atribuída ao fato de que o pato doméstico voa menos e anda muito mais que seu antepassado selvagem. O considerável desenvolvimento hereditário dos úberes das vacas e cabras nas áreas onde tais animais são ordenhados regularmente, em comparação com o tamanho dos úberes dos mesmos animais nos locais onde não se verifica tal prática, é outro exemplo do efeito do uso.” [2](DARWIN, C., 1985, pp. 49-50).

No Capítulo V, Darwin afirma:

“Com base nos fatos mencionados no primeiro capítulo, acho que deve ter restado pouca dúvida quanto à idéia de que, entre os animais domésticos, o uso reforça e desenvolve certas partes de seus corpos, enquanto que o desuso as atrofia, e que tais modificações são hereditárias.” (DARWIN, C., 1985, p. 137).

O que Darwin criticava em Lamarck não era sua concepção de hereditariedade, mas sim a importância que a vontade própria dos animais tinha sobre as mudanças orgânicas. Como bem observou M. Ruse: 

Para Darwin, o fator mais importante na mudança dos órgão não é a vontade do animal, mas seus hábitos.

A mudança da alimentação, por exemplo, mudaria o animal e seus descendentes. Se o animal fosse superalimentado, iria crescer e engordar. Como resultado, seus filhotes seriam maiores e mais pesados. Isso porque “o sistema reprodutor é eminentemente suscetível de se alterar em função das condições de vida” (DARWIN, C., 1985, p. 135).

Não é difícil ver aqui que as observações de Darwin, como quaisquer observações, são sempre feitas à luz de um referencial teórico. Ele compartilhava da idéia, dominante na época, de que toda característica, qualquer que fosse, era transmitida por hereditariedade.

A teoria de Darwin dependia fundamentalmente das alterações dos organismos provocadas pelo ambiente. Se essas alterações não fossem hereditárias, não poderia haver evolução, pois na geração seguinte os descendentes nasceriam todos iguais. Assim, não poderia continuar ocorrendo competição e as diferenças adquiridas não se acumulariam. Deste modo, a seleção natural não poderia atuar.

Embora o darwinismo fosse uma teoria meio nebulosa, enquanto modelo explicativo, ganhava a cada dia mais adeptos. Isso porque uma teoria não se consolida apenas por sua coerência interna. Acima de tudo, ela tem que ter o poder de fazer previsões. Nisso o darwinismo era pródigo; os fosseis confirmariam muitas delas. No entanto, na época em que publicou o Origem, podia-se levantar a objeção de que o registro fóssil era imperfeito, não apresentando as variedades intermediárias extintas. Em outros termos: imaginando-se o grande extermínio de incalculável número de elos de ligação entre os seres vivos atuais e os extintos, e, a cada período sucessivo, entre as espécies atuais e as extintas que as precederam, por que cada formação geológica não estaria repleta de tais elos? Dessa objeção, Darwin tentou escapar com uma hipótese tipicamente ad hoc. Diz ele:

“Só posso responder estas questões e rebater estas objeções supondo que o registro geológico seja bem mais imperfeito do que pensa a maior parte dos geólogos.” (DARWIN, C., 1985, p. 350).

Foi bom que Darwin[3] pensasse assim. Três anos depois, foram encontrados fósseis do Arqueopterix, animal com aspecto de réptil, mas coberto de penas __ um elo entre os répteis e as aves. Mais tarde, em 1875, foram encontrados fósseis de pássaros providos de dentes. Foram encontrados também vários fósseis de ancestrais de mamíferos atuais. Como previra Haeckel, ossadas humanas muito antigas foram encontradas; quanto mais antigas, maiores as diferenças em relação ao homem atual.

Desta forma, o darwinismo se sustentava nos meios acadêmicos. Falhava ao expor os mecanismos, mas acertava nas previsões. Como resultado, começava-se a criar a tênue, mas ilustrativa, confusão entre evolucionismo e darwinismo.

A defesa da idéia de evolução, mesmo na Inglaterra, não foi exclusiva de Darwin ou seus seguidores. Já em 1844 , era publicado o popular Vestiges of the natural history of creation, seguramente de R. Chambers. Era um livro evolucionista; nele apareciam muitos argumentos básicos que os darwinistas usariam mais tarde. O principal deles era o conceito de “recapitulação”. A recapitulação lançava mão da embriologia para comprovar a ocorrência da evolução. Assim, o embrião recapitularia cada etapa que o animal teria passado evolutivamente[4].

Para analisar os conceitos fundamentais de Darwin, podemos dividi-los em cinco argumentos básicos:

1) as populações podem crescer numa progressão geométrica;

2) as populações não crescem nesse ritmo;

3) os indivíduos de uma mesma espécie apresentam diferenças hereditárias;

4) em decorrência de 1 e 2, deve haver uma struggle for existence;

5) os mais aptos sobrevivem e transmitem suas características aos descendentes.

Os argumentos 1, 2 e 4 são de autoria de Malthus, tendo sido publicados com sessenta anos de precedência sobre o livro de Darwin.

O argumento 3 foi desenvolvido por Darwin de maneira desastrosa. Enveredou pelo lamarckismo ao mesmo tempo em que pretendia negá-lo. Darwin chegou mesmo a propor uma teoria para dar sustentação à herança dos caracteres adquiridos. A teoria foi chamada de “Teoria dos Pangenes” e diz que cada parte do corpo possuía “gêmulas” que caminhavam pelo sangue até os órgãos reprodutores[5]. (Veja-se HARRIS, C. L., 1985, pp. 274-277).

Resta-nos, portanto, apenas o quinto argumento, o da seleção natural, como o grande feito de Darwin. Infelizmente, como veremos, nem este sobra. Na época de Darwin, este conceito já não tinha nada de original. A idéia de seleção natural já tinha brotado na mente de Wallace, praticamente na mesma época.

Na carta a Hooker de 1844, citada acima, Darwin afirma estar lendo “inúmeros livros sobre agricultura”. Provavelmente um deles tenha sido o On Naval Timber and Arboriculture, escrito em 1831 por Patrick Matthew. Neste livro podemos ler:

“Dado que el campo de existencia es limitado y está previamente ocupado, sólo los más resistentes, los más robustos, los más adaptados a las circunstâncias, son capaces de luchar por lograr su madurez y habitan sólo en las circunstancias en las que está mejor adaptados y tienen mayor capacidad de ocupación que ningún otro grupo, quedando prematuramente destruidos los más débiles, menos adaptados a las circunstancias. Este principio está continuamente em acción”(MATTHEW, P. apud HARRIS, C. L. 1985, p. 205).

P. Matthew publicou uma longa nota de protesto no Gardener’s Chronicle (de 7 de abril de 1860). Darwin reconheceu posteriormente a precedência de Matthew, registrando o fato nas edições posteriores do Origem:

“Em 1831, Mr. Patrick Matthew publicou seu trabalho sobre ‘Construção Naval e Arboricultura’, no qual expõe precisamente a mesma opinião sobre a origem das espécies apresentada por Mr. Wallace e por mim próprio no Linnean Journal, opinião esta à qual nos referimos dentro em pouco, e que foi desenvolvida na presente obra. Infelizmente, o Dr. Matthew expôs esta idéia de maneira muito rápida, em algumas passagens dispersas num apêndice de um trabalho relacionado com um assunto inteiramente diverso, de modo que passou desapercebida de todos nós, até que ele próprio chamou a atenção para ela (...). As diferenças entre nossos pontos de vista não são muito relevantes.” (DARWIN, C. 1985, p. 35).

É provável que Matthew tenha feito uma observação tão breve porque tinha consciência de não estar falando nenhuma grande novidade. Para se ter uma idéia, na mesma nota em que Darwin admitia o trabalho de Matthew apresenta também o trabalho do Dr. Wells: “Nesse artigo[6] ele [o Dr. Wells] admite claramente o princípio da Seleção Natural, e foi esta a primeira vez que se mencionou tal reconhecimento” (DARWIN, C., 1985, p. 34).

Assim, a idéia de Seleção Natural, o núcleo da teoria darwiniana, não era tão original quanto nos querem fazer crer os manuais que reconstituem a elaboração da teoria. O Darwin histórico, reconstruído pela análise história a partir de seus textos e do contexto social, econômico, psicológico etc. de sua época é um Darwin um tanto quanto diferente daquele que nos é apresentado em livros que têm a função de treinar o pesquisador. A situação na época de Darwin era bem outra. O que parece acontecer é que os cientistas de então estavam, por assim dizer, ansiosos para que alguém assumisse esta teoria. Deve-se ter em mente que, quando da publicação de seu livro, Darwin era um cientista famoso e respeitado, contando já seus cinqüenta anos[7]. Tal quadro levou Castrodeza a afirmar:

“Seguramente, la circunstancia de que el respetable gentleman Charles Darwin apadrinara esa teoria maldita supuso un alivio para la comunidad científica al respecto que así saldría del dilema de aceptar una teoría en que de algún modo se cree pero que se ve abiertamente apoyada por gente poco recomendable.”(CASTRODEZA, C. 1982, p. 285).

A “gente poco recomendable” a que se refere Castrodeza: um estrangeiro revolucionário (Lamarck), um dissidente (Erasmus Darwin) ou um cientista aficcionado (Chambers).

Não devemos minimizar a importância de Darwin. Darwin foi um gigante da ciência. Mas devemos ter em mente as dificuldades que surgem quando se quer apresentar o darwinismo tal como ele aparece nas reconstruções habituais.

Quando, após ter sido elaborada, a teoria darwinista é reconstruída, a imagem que temos é a de que ela deflui naturalmente dos dados recolhidos durante a sua viagem. Darwin teria aplicado o método indutivo com todo rigor e imparcialidade para a elaboração de sua teoria. Assim diz ele em sua Autobiografia:

“Nada antes me tinha feito compreender inteiramente, se bem que eu já havia lido vários livros científicos, que a ciência consiste em agrupar fatos de tal forma que conclusões ou leis gerais possam ser deles extraídas.” (DARWIN, C. 1995, p. 24).

Ainda aí, algumas páginas adiante, diz ele que, quando começou a estudar o material recolhido em sua viagem, procurou seguir uma metodologia clara: “I worked on true Baconian principles, and without any theory collected facts[8] (...)”(DARWIN, C. 1995, p. 40).

No entanto, acreditamos que acima foi dito o suficiente para desacreditar a possibilidade de Darwin ter começado sem “qualquer teoria”. O Próprio Darwin desencoraja essa possibilidade. Quando fala, em sua Autobiografia, da influência de livro de Malthus, diz ele: “Here, then, I had at last got a theory by which to work[9].(DARWIN, C., 1995, p. 40). Em uma carta a C. Lyeel, de 1860, diz Darwin:

“Em seu modelo de comprovação, a seleção natural jamais progrediria pois, sem a elaboração de teorias, estou convencido de que não haveria nenhuma observação[10]”.(DARWIN, C. apud GEORGE, W. 1985).

Acreditamos ter argumentado o suficiente para mostrar como nossa imagem de ciência muda, quando levamos em conta o efetivo trabalho dos cientistas.


BIBLIOGRAFIA

Texto baseado em trechos do livro "O que é Darwinismo?" de Nélio Bizzo, Ed. Brasiliense, SP, 3a. ed. 1993, Modificado por Francisco Ângelo Coutinho

Referências extras:

CASTRODEZA, C., 1982. Aspectos historiograficos de la ciencia: el caso de la teoria de la seleccion natural.Teorema, vol. XII/3 (Valencia).

DARWIN, C., 1985. Origem das espécies. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo. (Trad. Eugênio Amado)

DARWIN, C., 1995. Autobiography. In: DARWIN, F., 1995.

DARWIN, F., 1995. The life of Charles Darwin. London, Senate.

GEORGE, W., 1985. As idéias de Darwin. São Paulo. Cultrix/EDUSP. (Trad. Sônia Régis).

HARRIS, C. L., 1985, Evolución: génesis y revelacionesMadrid, Hermann Blume. (Trad. de Antonio Resines).

LAMARCK, J.-B., 1971. Filosofia zoológica. Barcelona, Mateu Editor. (S/T)

RUSE, M., 1983. La revolución darwinista. Madrid, Alianza. (Trad. de Carlos Castrodeza).



[1]- A palavra “evolução” não aparece nem uma só vez no Origem. Na última frase do livro é que podemos ler: “(...) as formas mais belas, mais maravilhosas, evoluíram a partir de um início tão simples, e ainda prosseguem hoje em dia neste desenvolvimento” (DARWIN, C., 1985, p. 366. Obs.: o grifo sob “evoluíram” é nosso.).
[2]- Os itálicos nesta citação são nossos
[3]- Newton sabia que a órbita de mercúrio era ligeiramente inconsistente com sua teoria, mas a manteve apesar disso. Quem poderá atrever-se a sugerir que Newton deveria ter retirado sua teoria para o bem da ciência?
[4]- Para uma minuciosa análise do livro de Chambers, remetemos o leitor a RUSE, M., 1983, pp. 131-140.
[5]- Deve-se acrescentar que até nisso Darwin foi antecipado. A teoria dos pangenes já havia sido formulada por Hipócrates (cf. HARRIS, C. L., 1985, p. 157.
[6]- O artigo de Wells foi publicado em 1818 mas já havia sido apresentado à Real Sociedade, em 1813.
[7]- É sintomático que uns três anos depois da publicação de Darwin a maioria dos biólogos da Inglaterra pronunciou-se a favor de uma teoria transformista para explicar a origem da diversidade orgânica.
[8]-“Trabalhei com os verdadeiros princípios baconianos e, sem qualquer teoria, reuni os fatos”.
[9]- “Aqui eu tinha, finalmente, uma teoria com a qual trabalhar”.
[10]- Infelizmente, na edição que temos em mãos das cartas de Darwin, esta passagem foi cortada. Por isso, citamos uma fonte secundária.